JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Na longa estrada da vida algumas pedras precisam ser vencidas

Ainda consigo lembrar. Eu tinha exatos dez anos de idade, quando precisamos sair de Queimadas, naquele tempo um simples povoado de Pacajus. Meu pai, que havia sido demitido de um colégio onde lecionava Aritmética, voltava a trabalhar. Agora, nomeado como Fiscal da Fazendário (Secretaria Estadual da Fazenda do Ceará), e tínhamos que mudar para a capital.

Antes da viagem, uma olhada rápida no quintal da Vovó. Pela última vez. Eu ia embora, e ali deixava as mangueiras, os cajueiros, as galinhas, os patos, os capotes, uma jumenta, o cachorro Pintado e aquele barulho melódico de todos os fins de tarde do Vem-vem e das cigarras. Também lembro, ainda, que eu fui o último a me despedir de Vovó, abraçando-a também pela última vez. Depois do abraço, corri e deslizei o último pau da porteira, fechando-a.

Nunca mais voltei ali. Nunca mais olhei minha Avó, nem nunca mais cacei passarinhos, nem escutei os voos rasantes das corujas. Os pirilampos ficaram para trás. As mutucas, também. E ali se encerrava um dos mais importantes e construtivos ciclos da minha vida. Ciclo da infância, da liberdade, e das brincadeiras respeitosas.

Fui o último a subir no caminhão. Não tive coragem de olhar para trás, porque ali ficava parte de mim. (“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”)

Naquele dia, primeiros anos da década de 50, a viagem que hoje não consome 30 minutos para percorrer o percurso, levou mais de três horas. E o caminhão não parava. Apenas a distância que não queria diminuir, como se nos convidasse à voltar para continuar a vida na roça, apanhando cajus, pescando piabas, caçando passarinhos – e, vivendo!

A estrada era a continuação da vereda

Caminhão da mudança acionado pela manivela. Tudo funcionando. Eu, viajando junto das panelas velhas, redes, cristaleira e tamboretes, tão logo o caminhão teve acesso à vereda, me agarrei ao cachorro pela possibilidade que ele, já sofrendo saudade, resolvesse pular do caminhão e voltar para o aconchego da Vovó. Os animais nunca perdem ou esquecem o “arquivo” do faro. Eu, sem perceber que Vovó entrara na casa, faço meu último aceno – provavelmente para o tudo onde vivi e aprendi a viver como gente.

Felizmente que os tocos que ainda ficaram na vereda aberta à base de foice e machado, não furaram os pneus. A estrada longa foi alcançada e prometia nos levar à uma nova vida, sem muitas coisas que ficaram para trás, mas com a esperança de vitórias.

O caminho que nos levou à estrada

A cada árvore da vereda que deixávamos para trás, era um desvio para não machucar. Como se eu conhecesse folha por folha, galho por galho, e tivesse o nome de cada uma. Atingimos a estrada sem problemas.

Agora, como o cachorro não se atreveria mais a pular para tentar voltar, se aquietou sobre um colchão velho de molas. Eu fui para a frente e fiquei à mercê do vento que tocava no meu rosto, lavando-o. Deformando-o pela força da ventania. Enfrentar aquele vento, era, sem dúvida, abrir as portas do futuro.

A “cidade grande” foi atingida. Nos dirigimos na direção do mar, como se algum navio estivesse à nossa espera. Não houvera nenhum milagre de Moisés, tampouco estávamos diante do Mar Vermelho. Era a praia do Pirambu, e ali nos aguardava a “Comissão de Recepção”: um gato mariscado, que provavelmente esperava a maré secar para permitir que os siris viessem à tona como presas incautas a lhe proporcionar o jantar de todos os fins de tarde; um cachorro vira latas, que caçava restos de comida trazidos pela maré enchente.

A casa: paredes e telhado de palhas. Um barracão onde estacas internas permitiam armar as nossas redes. Água, apena a do mar – felizmente havíamos trazido um pote, uma quartinha e algumas latas que poderiam servir de depósito.

Mas, finalmente, estávamos numa nova estrada e poderíamos iniciar a caminhada que nos permitiu chegar até aqui.

Vereda e ao fundo dá para ver a nossa casinha branca que ficou

Na manhã do novo dia, o barulho sufocado das ondas do mar, que não ficava distante. Algo em torno de sessenta metros, num espaço separado pela praia pouco frequentada. Não havia urbanização, e os frequentadores que por ali passavam, eram pescadores a caminho de seus barracos – iguais ao nosso.

Teresa, uma jovem criada por mamãe, era uma espécie de Governanta. Tudo mandava fazer ou fazia ela própria. Serviu o café: café preto e um banda de pão com nada. Hoje entendo que aquilo já era o nosso muito.

Mãe saíra à procura de trabalho, enquanto o pai para assumir um novo emprego. Aos sábados e domingos, todos nós saíamos para procurar um novo local de moradia.

Durante a noite, a poesia vinda do mar nos mostrava o caminho que precisaríamos seguir para, como Don Quixote, encontrar um moinho que pudesse nos proporcionar novos ventos, novos ares na continuidade da estrada que a vida nos oferecia.

30 pensou em “A ESTRADA E A VEREDA

    • Altamir, melhor que agradecer pela generosidade do teu comentário, só assistindo um bom filme daqueles do Cint Westeawood. Obrigado, amigo.

  1. José Ramos, sua coluna é um pedra preciosa que, em sendo encontrada, o garimpeiro não ousa guardá-la para si.
    Quanto lirismo em suas lembranças, que eu também chamaria de inocente e pura saudade.
    Cada objeto, coisa, particularidade, ser vivente ou sensação reencontrada neste seu texto, até pareceu me levar para bem pertinho daquele menino se despedindo do seu lugar. Talvez pelo fato de eu, pobre menino nascido já sem as avós, me identificar com todos que falam com o coração de um avó relembrada.
    Já li, reli em voz alta para a minha mulher e dela você recebeu o elogio “que lindo!”.
    Eu acrescentei “e forte. E emocionante”.
    Agora pegarei a pedra preciosa e espalharei pelo oco do mundo, para que um maior número de pessoas possam enricar mais, cada um se sentindo um José Ramos menino.
    Antes disso me deixe dizer um muito obrigado, por fazer o meu domingo começar assim.

    • Jesus, até seu nome é “nobre, bom”. Certamente vem daí a sua generosidade. Realmente, viajar na “buléia” do caminhão, agarrado com o cachorro, ambos na direção do futuro, não dá pra esquecer.

  2. Saudades, lembranças, vivências…
    Um verdadeiro turbilhão de viagens no tempo e espaço.
    Um primor de poesia e lirismo. Tocou fundo na gente, Zé.

    Parabéns!!!

  3. A sempre uma beleza na tristeza do partir . Belo texto !. Me trás a mente um dos livros que mais gostei de ler : Saudade. Escrito por Tales de Andrade .

  4. Prezado ZéRamos, é sempre um prazer ler a sua coluna aos domingos, voce escreve de uma forma lírica, sem ser piegas, viajo junto,afinal, tivemos a mesma origem, DE fORTALEZA PELA BR116 o asfalto era até Nova Russas(?) o resto, era a famosa carrossal, cheguei a Brasilia em 1966, vim de avião (CAN) demorou dois dias, For/RECIFE por atraso, tivemos que dormir “no Recife, chegando em Salvador, o motor do DC3 teve problemas dormimos em Salvador, no dia seguinte decolamos e finalmente chegamos em Brasília, minha primeira decepção, o aeroporto era de madeira! Hoje, após 55 anos, me sinto Kandango, casei, quatro filhos, cinco netos, me sinto realizado. Adoro Fortaleza, mas me sinto Kandango!

    • Marcos, obrigado conterrâneo. Fui à Brasília umas seis vezes, no máximo. Não conheço. A primeira vez foi nos anos 70. Minha primeira namorada, em Fortaleza, era de Pecém. Tinha um irmão que trabalhou anos no Ministério da Agricultura, até se aposentar por conta de um acidente que lhe amputou uma das pernas. Depois, a própria namorada também trabalhou no Ministério da Agricultura e hoje também é aposentada. Toda a família mora em Brasília, mas não sei se ainda são todos vivos.Não tenho certeza se, na época a “estrada” já era denominada BR-116. Lembro, entretanto, que a saída da vereda ficava num lugar chamado Chorozinho ou Horizonte. Faz muito tempo.

  5. Nas suas crônicas magníficas, Zé Ramos, eu sempre encontro um espaçozinho para me agasalhar, ler, me proteger da chatice das mediocridades esquerdóides, e ser feliz dentro do universo traçado pelo mestre.

    • Cícero, o lençol é grande. Cabe todos. Vamos nos agasalhar, pois a cosia tende a ficar preta nos próximos meses. Tem uma mosca “apitando” no meu ouvido. Eita Brasil que não tem jeito, siô.

  6. Turbilhão de Emoções – Como garimpas bem as palavras colhidas no rio das lembranças, especialíssimo Zé: (…) porque ali ficava parte de mim. (“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”).

    Impossível não recordar minha despedida de minha Desengano de infância…

    Brigaduuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, Zé!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  7. Zé Ramos, nosso poeta.

    Como você consegue escrever textos tão maravilhosos e com tanta poesia ?
    Eu fico imaginando o dia em que a sua pena produza um livro encantado
    somente com as suas lembranças da infância. Infância essa que nunca
    acaba e nos proporciona toda semana maravilhosos textos que eu, confesso, invejo
    pois sei que jamais saberia escrever um texto como este.

    Não falo só por mim, pois sinto que todos nós leitores e comentaristas deste Jornal
    ficamos semanalmente aguardando com muita expectativa a grande dose de
    poesia em prosa que você sempre nos oferece com tanta generosidade.
    Abraços, grande poeta.

    • d.matt: você nem desejaria me conhecer “zangado”. Tenho consciência que minha volta ao barro não será tão demorada. Tenho 78 (faço em 30 de abril). Fui menino de comer barro da parede, de cagar lombrigas, de ter bexiga, sarampo, gonorréia na juventude. Quem tomou Benzetacyl sabe o que gonorréia significa. Tive chato, barriga inchada, caganeira, o escambau. Mas, para contrapor tudo isso, tive uma infância feliz, livre, aprendendo as coisas fazendo-as. Diferente de hoje, convenhamos. Nossas casas estão cheias de monstros – e nós que abrimos a porta para a entrada deles. Fui alfabetizado no tempo de Anísio Teixeira. Hoje o “Deus” é um bosta de nome Paulo Freire, cuja maior contribuição é “analfabetizar” o estudante. E começa, “analfabetizando” os professores. Agora me permita, ao final, dizer apenas uma coisa: “poeta é o beija-flor, que cumprimenta e faz carinho para muitas flores diferentes”. Não possui nenhuma, mas todas lhes pertencem.

      • Obrigado pela sua resposta, poeta.

        78 anos para mim não é nada, tenho 85 e completo
        86 em Maio. Estou muito tranquilo esperando a hora de
        voltar à verdadeira morada original.

        Por falar em Beija Flôr, quando encontro alguém que me diz não acreditar em Deus, eu pergunto:

        Se não existe Deus, então quem foi que inventou o Beija Flôr ?

  8. Parabéns pelo belíssimo e emocionante texto, querido Escritor José Ramos!

    O livro da sua vida mostra muita grandeza de espírito e muita garra, sua e da sua família. E o mais importante: Você venceu, amigo!!! O menino tornou-se um grande homem!!!

    “Quem sai aos seus, não degenera”! Quando a índole é boa, a vitória é certa!

    Grande abraço, querido amigo!

  9. Seu ZéRamu.. eu preciso urgentemente esticar meu dia pra acompanhar com mais frequência suas crônicas maravilhosas, cheias de ternura e VIDA. Vida pura, não trechos inventados por alguma vida externa à sua. Vc está, cada vez mais igual aos melhores vinhos, aqueles que entram em cardápios dos opulentos e poderosos rechonchudos seres do NADA Seres que sequer sonham em viver um momento como esse, em que um cachorro amigo vale mais que um rei, um café e um naco de pão valem maios que o mais rico jantar regado a vinhos finos emedalhados 3 vezes e lagostas cuidadas por chefs da mais alta categoria.. Vida não se compra, Zé. Viva se VIVE.. como você vive a sua e a dos seus maravilhosos e reais personagens, nas suas histórias tão belas. Parabéns, meu amigo ! Tenho você na mais alta estima e consideração. E me orgulho de ser seu amigo !

    • Fred, tudo bondade sua, irmãozão! Seu coração é maior que você, por isso expele tanta generosidade e caminha na bondade diária. Beijos nesse coração véi, macho!

Deixe um comentário para José de Oliveira Ramos Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *