
Arquivo diários:20 de dezembro de 2022
DEU NO X

MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

ABSURDOS
Absurdo é uma ave grande e desajeitada, cuja principal característica é seu grito, alto e estridente, capaz de desnortear outros animais que estejam por perto, inclusive seres humanos.
Seu nome vem exatamente dessa característica. Do latim “absurdus”, unindo a partícula “ab” (desde; a partir de) a “surdus” (o que não escuta), adquirindo, pelo uso coloquial, o significado de dissonante, fora do tom, desafinado.
Não se pode dizer que seja um animal raro, porque os absurdos proliferam em todo o planeta, sendo comuns na América do Sul. No Brasil, parecem encontrar condições muito favoráveis à sua reprodução. Estudos comprovam que grandes absurdos, oriundos dos Estados Unidos, às vezes migram para o sul, tornando-se ainda maiores quando chegam a terras brasileiras.
Há registros de absurdos na Amazônia, na caatinga, no cerrado, na mata atlântica e nos pampas. Mas é uma ave misteriosa, que consegue se manter oculta onde deveria facilmente ser vista, aparecendo inesperadamente em ocasiões e lugares improváveis.
Um dos maiores mistérios dos absurdos é a diversidade de formas com que são descritos. Ao que tudo indica, ninguém tem certeza quanto a sua aparência, mas todo mundo nota quando um absurdo chega. Ou quase todo mundo, porque sempre há os distraídos, que não percebem a presença do absurdo, mesmo quando ele está diante de seus olhos.
E tem também aquela turma que finge só perceber os absurdos que prejudicam seus interesses. Quando o absurdo os favorece, parecem mais distraídos que os distraídos de verdade:
– Olha o tamanho desse absurdo, gente!
– Onde?
– Aí! Na sua frente!
– Aqui? Não vejo absurdo nenhum.
E a vida segue. No fundo, a presença de um absurdo sempre causa certa surpresa, perplexidade e até medo. Especialistas dizem que mesmo quem é responsável pela criação de um absurdo se abala com sua presença. Mas certamente há quem se divirta criando absurdos.
Como diz o poeta Jessier Quirino, nesse mundo existe gente pra tudo, e ainda sobra dois pra tocar gaita!
O certo é que às vezes o absurdo é fugaz: surge, mas logo desaparece. Outras vezes permanece por longos períodos junto a agrupamentos de seres humanos. Vai ficando por ali, fingindo normalidade, até que as pessoas acabam se adaptando à sua presença. Continua sendo um absurdo, mas não incomoda mais ninguém. Ou quem se incomoda não diz nada, com receio de ser tratado como intolerante.
Sim! Porque às vezes o absurdo ganha a proteção de defensores, ONGs e ativistas, de modo que quem o trata como tal, ou seja, como absurdo, passa a sofrer represálias de toda sorte.
E ainda tem os absurdos que fazem seus ninhos no alto dos prédios públicos, em palácios, ministérios e tribunais. Esses costumam ser grandes, apesar do esforço de algumas autoridades para os fazer parecer pequenos. O simples ato de expor publicamente a existência desses absurdos pode levar alguém a sofrer sanções jurídicas, com a perda de bens e até da liberdade.
Mas, o fato é que os absurdos seguem alheios a tudo isso, e não deixam de ser o que são: absurdos. Podemos fingir que os ignoramos, podemos simular indiferença quando os vemos, ou negar a sua presença. Ainda assim eles continuarão lá.
E quem conhece a sua natureza sempre sentirá a esperança pulsar em seu coração quando ouvir alguém dizer, em tom de alerta:
– Mas isso é um absurdo!
P.S.: Como não consegui a foto de nenhum absurdo, a imagem ilustrativa é de um urutau, ave também conhecida como mãe-da-lua.
DEU NO X

RESUMO PERFEITO
CÍCERO TAVARES - CRÔNICA E COMENTÁRIOS

MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (1969) – UMA OBRA-PRIMA DE SAM PECKINPAH: O POETA DA VIOLÊNCIA
Crônica dedicada ao cinéfilo Altamir Pinheiro, autor do esperado livro ‘No Escurinho do Cinema’
Cartaz em Blu-Ray de “Meu Ódio Será Sua Vingança.”
“The Wild Bunch,” EUA, (1969), ou “Meu Ódio Será Sua Herança,” possui uma abertura intrigante onde a uniformidade com a longa e antológica sequência final do longa-metragem. O filme começa com um grupo de policiais uniformizados, montados a cavalo, entrando numa pequena cidade norte-americana decadente. O bando cruza com crianças que brincam no meio da rua, perto dos trilhos de um trem. Algumas tomadas esparsas mostram que a brincadeira infantil é um bocado cruel: os meninos jogaram escorpiões no meio de um formigueiro, e os bichos venenosos estão sendo devorados pelas formigas. Junto, há uma tenda onde um pastor exaltado prega a salvação da alma, ignorando a crueldade infantil contra os animais indefesos.
“Meu Ódio Será Sua Herança” encerra enfocando os remanescentes do mesmo grupo de homens que aparece no princípio. Eles não são policiais, e sim uma quadrilha de assaltantes de banco; aquele era apenas um disfarce, como o espectador logo vai descobrir na movimentada e sangrenta sequência que abre o filme com gosto de pólvora. Não há heróis aqui, nem vilões. Todo o longo espectro de personagens é moralmente questionável.
Na ocasião do fim do longa os foras da lei estão no México, e se dirigem para resgatar um dos membros do grupo, preso por um rebelde paramilitar chamado General Mapache (Emilio Fernandez). O violentíssimo tiroteio que se segue não apenas encerra o filme de maneira brilhante, mas fecha um círculo e explica a cena dos escorpiões da abertura; os escorpiões são uma metáfora para os bandidos.
Os escorpiões são intrigantes porque jamais estiveram no roteiro do longa-metragem. Na verdade, eles foram uma sugestão de Emilio Fernandez, que contou ao cineasta Sam Peckinpah como se divertia no deserto mexicano, quando era menino. Peckinpah percebeu a fascinante simetria e filmou o ataque das formigas aos escorpiões abusando de planos-detalhes. Ao fazê-lo, acabou concebendo uma das aberturas mais estranhas, criativas e interessantes do cinema contemporâneo.
Enquanto filmava nos sets poeirentos do México, é possível que o diretor não soubesse que estava colocando uma pá de cal no já combalido gênero western. Adepto dos chamados westerns crepusculares, que lamentavam a proximidade do fim do gênero por causa do crescente desinteresse das novas gerações de espectadores, “Meu Ódio Será Sua Herança” transportava para a história este lamento. Foi uma despedida honrosa e adequada, já que o filme não é ambientado nos anos de ouro do Velho Oeste, mas em 1913.
Às vésperas da Revolução Mexicana, o antigo código de honra dos homens violentos e beberrões já não valia mais nada. O mundo agora era urbano. Botas viravam sapatos engraxados, revólveres transformavam-se em metralhadoras. A violência migrava dos descampados empoeirados para as cidades grandes. O Velho Oeste dava os últimos suspiros. Esse é o grande tema da obra de Sam Peckinpah, e também o pano de fundo do mais controverso e impactante dos filmes que dirigiu.
Em 1969, “Meu Ódio Será Sua Herança” foi recebido da mesma forma que “Clube da Luta” foi em 1999: sob acusações pesadas de ser hiperviolento e gratuito, até mesmo fascista. Para alguns, Peckinpah glorificava a violência. Reza a lenda que o astro William Holden teve uma violenta briga com o cineasta, após ver o filme pronto e odiar o resultado final. A verdade é que o filme é tremendamente violento mesmo: somente no verdadeiro balé de sangue que é o duelo final, Peckinpah gastou doze dias e mais de 10 mil cartuchos de bala de festim.
Sim, é verdade que o filme apresentou uma nova maneira de representar a violência no cinema, utilizando pela primeira vez a câmera lenta para mostrar mortes. Caprichando no sangue e no estilo, Peckinpah enfatizava o sangue e fazia as mortes ganharem um significado simbólico e poético que ultrapassa a morte em si. No cinema dele, morrer dói pra caramba. Mas muita gente não entendeu.
A péssima recepção do filme pelas plateias no mundo foi ajudada pela estrutura narrativa incomum. Um filme tradicional enfatiza o enredo ou os personagens; “Meu Ódio Será Sua Herança” não faz nenhum dos dois. Pike (William Holden) lidera o bando de assaltantes que se encaminha para uma última missão, que é roubar um trem carregado de armas para um rebelde mexicano. Eles são perseguidos por um grupo, liderado por Deke Thornton (Robert Ryan), cujo objetivo é capturar ou matar Pike.
Os dois já foram parceiros, anos antes, mas algo separou seus caminhos. Nenhum deles é retratado com profundidade; Peckinpah só oferece fragmentos do passado. Pike e Deke são homens duros, que mostram nos rostos cansados e nos ombros caídos o peso dos anos. Ambos são melancólicos. Sabem que estão ultrapassados pelo tempo. Sabem que o fim está próximo.
O grupo de Pike bebe o tempo todo e frequentemente cai na gargalhada com piadas bobas, como se estivesse à beira da histeria. O personagem de William Holden, ruminando as palavras e com o olhar perdido no horizonte, resume perfeitamente o clima do filme: eles pertencem ao passado. Não há futuro possível para gente assim.
“Meu Ódio Será Sua Herança” documenta a melancolia do fim de uma era, a troca de guarda entre duas gerações muito diferentes. À medida que encerrou o tempo dos faroestes e inaugurou a fase da hiper-violência, representou a mesma coisa para Hollywood. Pouquíssimos filmes têm essa honra de serem marcos divisórios. Por isso, este aqui é um clássico inesquecível.
Para tentar compreender por que o western não foi mais o mesmo depois do filme do Poeta da Violência e outros clássicos que vieram depois de cineastas comprometidos com a Arte Cinematográfica, é obrigatório assisti-lo por várias vezes para absorver a ironia refinada do diretor Sam Peckinpah nas cenas de violências, pré-anunciando a morte do gênero, sem contar que a tecnologia está aí para idiotizar as histórias fascinantes dos antigos THE END westernianos. “A Mulher Rei” (2022) é um exemplo cagado e cuspido dessa idiotice tecnológica feminal. Transformou-se uma história rica de fatos bélicos, sangrentos, numa luta de porrinha de boteco na Champs-Élysées de Paris do século XIX, com Goiano Braga Horta servindo CACHAÇA TURMALINA DA SERRA, FABRICADA NA PARAÍNA DE ZÉ LIMEIRA, VESTIDO DE AGROBOY.
a) Trailer MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (The Wild Bunch), de Sam Peckinpah, WARNER, 1969
PENINHA - DICA MUSICAL
