JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

1 – CRESCER E MULTIPLICAR

Família reunida dá pausa na multiplicação

Trabalhar é o caminho e a solução para quase tudo. Inclusive, para esquecer a realidade e as coisas simples que a Natureza divina nos oferece, todos os dias. Muito provavelmente, foi pensando assim, que os gestores públicos do passado criaram “férias” para quem se dedica tanto nas obrigações trabalhistas assumidas e, como castigo disso, acaba esquecendo a família que está construindo.

Felizmente, não era assim que pensava Antônio Luciano, homem rude em todos os sentidos e, felizmente, correto e honesto em todos os seus propósitos – coisa rara neste Brasil que rouba a si próprio – que conseguia ver que, todos os dias têm 24 horas, mas a noite, infelizmente, só têm 8.

E era esse mesmo Antônio Luciano que afirmava com conhecimento prático e acadêmico:

– Se, dessas oito horas da noite a gente aproveitar todo dia, pelo menos duas fazendo malinagens “capatroa”, ela nunca vai sentir dor de cabeça, nem ter tempo para sofrer depressão. A gente economiza na compra de remédios!

Era essa a filosofia do viver de Antônio Luciano, casado de papel passado com a Tia Maria. Tia Maria, teve ano que pariu duas vezes. Uma em fevereiro e outra em dezembro. Se doaram inteiros na “multiplicação”, embalados, nos tempos dos anos 50, pelas sinfonias de cigarras, grilos e corujas.

Fizeram tantos filhos que, certa tarde de domingo, esperando o café com cuscuz depois da madorna do almoço, Antônio percebeu que, no cio, a jumenta Brilhosa aporrinhava o jumento Fabrício, se negando a ter e dar prazer, e resolveu chamar o filho Zé Luciano para soltar a jumentinha. De repente, um rapaz e um menino se postaram na frente dele e, uníssonos disseram:

– Sim, pai!

Pois, eram tantos filhos, que Antônio Luciano esqueceu e, na hora do batizado, repetiu o nome. Dois filhos com o mesmo nome.

E essa foto aí mostra a exata realidade do sertão cearense. O pai se preparando para ir ao trabalho, encostado no jumento; o cachorro pirento e cheio de pulgas todo enrolado, deitado; a mulher prenha, com três filhos pequenos e o mais velho sentado ao lado da mulher que já pariu dois (estranhamente, um moreno e um mais clarinho – não se espantem, pois é que ela bebia muito café durante a gravidez) na despedida do pai.

No sertão, “crescer e multiplicar” não é apenas uma passagem bíblica – às vezes, a interpretação muda de figura, e é feita ao pé da letra, “triplicando”.

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2 – OS PRAZERES DE IPANEMA E HIGIENÓPOLIS SÃO DIFERENTES DE TIMBAÚBA

Moderno “rebolador de barro” de Timbaúba

São muitas as afirmações de entidades envolvidas com a saúde pública, dando conta da escassez e da quase inexistência de saneamento básico na maioria das cidades brasileiras, e a má qualidade operacional desse item na saúde do povo. Virou justificativa cultural, o dizer que, “saneamento básico não aparece, por isso não dá votos, o que justificaria sua inexistência”.

Na minha Queimadas, lembro bem, quando apertava a necessidade de “rebolar o barro fora”, a gente pegava a vara de derrubar manga e caju, um sabugo de milho e se enfiava mata à dentro – a vara era para espantar os porcos e as galinhas. Se não fizesse isso, esses saborosos animais domésticos não deixavam ninguém cagar.

Agora, se a vontade de fazer isso permitisse, não precisava levar a vara. Dava tempo subir na mangueira e, de lá, “atirar merda” nas cabeças dos porcos. Pior mesmo, era o castigo imposto pela Avó: banhar os animais para retirar a bosta. Era muito trabalhoso levar dois porcos para banhar no açude. Eles eram levados soltos e, costumeiramente, se embrenhavam na mata. Era uma luta hercúlea para juntá-los e trazer de volta.

Mas, como toda regra tem exceção, na casa da tia Nezinha, na Timbaúba – um povoado nem tão distante das Queimadas, o luxo era diferente, haja vista que havia dois “water closet” – um, mandado construir na parte externa da casa, logo ao lado da camarinha, com uma porta da qual apenas ela tinha a chave; e outro, no quintal para uso geral – na realidade, um buraco no chão, protegido por um banheiro de palhas de coqueiro.

No bairro Higienópolis, na capital paulista, claro que a realidade é outra. Banheiros modernos, sempre higienizados, duchas íntimas e até equipamentos que, na descarga, transformam o odor insuportável da merda em colônias francesas. Mas, essas são as exceções da regra, e nunca somam nas estatísticas do IBGE.

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3 – A BODEGA E O BODEGUEIRO DO SERTÃO

Uma bodega típica em Simplício Mendes – interior piauiense

Nunca teve lista. É, lista, Aquela relação abestalhada que muitos que querem aparecer levam para os supermercados no dia de fazer a “compra grande” do mês.
Tava tudo ali, decorado na cabeça, por força da necessidade. Biscoito de maisena, sabonete Phebo, essas coisas que a gente comprava quando era no começo do mês e a conta do caderninho ainda estava pequena.

Levava 250gr de pó de café, mil réis de pimenta do reino, mil réis de colorau (quando acabava o que era feito de urucu e vinha do interior), 100gr de banha de porco, 200gr de manteiga real, uma barra de sabão, 1 lata de leite Ninho, 1kg de feijão, 2kg de arroz, 2 kg de farinha, 1 litro de querosene, duas velas das médias, duas latas de sardinhas Coqueiro, 1 lata de Kitut fiambrada e 1 kg de sal. Essa era a compra de casa, anotada no caderninho para pagar quando o “dinheiro do papai saísse”.

A compra da Vovó, era mais ou menos essa aí, mas no lugar do leite Ninho, tinha 1 quarta de fumo em rolo; no lugar das 250gr de pó de café tinha as mesmas 250gr de café, mas em grãos. Não entravam na lista o feijão, o arroz, a farinha e o açúcar. Tudo era colhido na roça e no lugar do açúcar, a gente usava mesmo era a rapadura.

Segredos dos negócios sempre existiram. E um dos segredos guardados sob sete chaves, era a mania que Diógenes da Nêga, bodegueiro lá das beiradas do Açude Novo, na Guaiúba, tinha para comprar alguns itens em maiores quantidades, embora o consumo não fosse tão grande.

Fumo de rolo, charque, pirarucu, camurupim, rapadura, querosene, creolina, banha de porco e óleo comestível de caroço de algodão, eram itens que lotavam sempre a despensa do bodegueiro.

Charque no feijão, quase todo mundo usava, querosene toda casa consumia mais de 1 litro por semana, apenas nas lamparinas, creolina para limpar as bicheiras dos animais e fumo de rolo para suprir os cachimbos. Talvez fosse essa a justificativa dos grandes estoques.

Agora, nunca teve bodega que não vendesse fiado. Ainda que ostentando em muitas prateleiras, aquela placa tradicional de “Fiado só amanhã”!
Hoje tudo é muito diferente, com a chegada dos sacolões, dos pequenos comércios de cereais, das padarias que se triplicaram e, finalmente, com a chegada dos supermercados, sufocando e acabando quase que definitivamente com as bodegas e os bodegueiros.

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4 – ROSÁRIO DOS COQUINHOS

Rosário de coquinho catolé

Coco catolé. Para as crianças, uma divertida brincadeira coroada com a satisfação da alimentação; para outros, uma alimentação, se misturada à outros ingredientes; para outros, a única fonte de renda possível de suprir as necessidades mais prementes.

Em algumas cidades do interior dos estados do Ceará, Piauí, Paraíba e Pernambuco, o “rosário de coco catolé” não permite qualquer associação religiosa. É muito forte entre o brincar comendo alguma coisa e a manutenção cultural descoberta pelos antepassados.

A venda de rosários ajuda na manutenção de famílias, como faz o menino do amendoim torrado nos trens suburbanos do Rio de Janeiro. A extração do óleo comestível e medicinal, tem se transformado numa fonte de renda no alto sertão nordestino, onde prolifera, ainda, a fome – em meio ao cântico dos sabiás.

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