JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

DE QUE MORREU FERNANDO PESSOA?

Nas últimas colunas, falamos do fim de Pessoa. Falta o complemento. Tentando saber de que morreu Pessoa. Ao responder, antes de tudo, é preciso considerar o cenário primitivo da medicina àquele tempo. Para exames de imagem, único recurso era a radiografia (desde 1895). O uso de plasma, como transfusão, apenas começava. Sulfas são de 1936; bancos de sangue, de 1937; penicilina, de 1944; ultrassonografia, endoscopia, tomografia, ressonância magnética e outros exames sofisticados viriam só na segunda metade do século XX. Tudo bem depois de sua morte, no distante 1935.

Em Portugal, longe dos grandes centros da Europa, atendimentos médicos domici liares ainda eram rotina. Hospitais destinavam-se apenas a casos graves, quase sempre terminais; e mais pareciam asilos ‒ lugares a que se ia para amainar dores de feridas crônicas, fazer amputações, lancetar grandes abscessos e morrer. Sem informações médicas mais detalhadas, resta especular sobre o diagnóstico. Vamos aos mais indicados pelos especialistas que consultei, todos (e foram muitos) professores doutores.

CIRROSE. Referência mais comum, entre os especialistas em Pessoa, é que a morte se deu por cirrose, a partir do álcool que consumiu pela vida inteira. Cirrose é fibrose grosseira que endurece o fígado e o leva à falência. Pode também evoluir para grande conjunto de consequências físicas ‒ disfunção sexual, atrofia testicular, aumento das mamas, queda de pelos; além de lesões vasculares da pele, em forma de aranha, conhecidas como telangiectasias aracniformes – dado seu tamanho diminuto, não facilmente reconhecíveis por quem convive com o paciente. Ausente quaisquer destes sinais, em seu caso.

Não obstante, o histórico de Pessoa sugere ser mesmo grande a chance de haver tido cirrose. Talvez até mais que apenas uma grande chance. É esse, aliás, o diagnóstico do médico dr. Bastos Tigre, depois de examiná-lo pelos anos 1920. Com o conhecimento que se tem hoje, é bem sabida a relação epidemiológica direta entre cirrose e alcoolismo, num período de 25 anos, avançando à medida que aumenta o volume do álcool. Praticamente nula até uma ingestão diária de 40 gramas, evolui para percentual de 50 por cento ao atingir 200 gramas, sem aumentos estatísticos a partir de então. E Pessoa bebia, por dia, muito mais que ditos gramas.

Na tentativa de calcular o montante de álcool diário por ele consumido, Francisco Manuel Fonseca Ferreira contabiliza uma garrafa de vinho a cada refeição principal, seis cálices de aguardente ao longo do dia, mais uma garrafa de vinho (ou mesmo garrafão) durante a noi te. Provavelmente, a quantidade seria maior ainda. A começar pelos seis cálices de aguardente, ao longo do dia, que parece uma conta modesta. Sobretudo no período próximo da morte. Sem contar que à noite, em vez de vinho, quase sempre prefere mesmo a aguardente da bendita garrafinha que sempre sempre o acompanhava.

Mas não é cirrose, com certeza, a causa de sua morte. Nem nenhuma doença hepática crônica descompensada. Tivesse efetivamente sofrido algo assim, dificilmente exibiria o vigor intelectual e a grandeza na produção do seu último ano de vida. Sabemos que se sentiu mal, teve dores abdominais e internou-se no hospital. Tudo muito rapidamente. Mas, para que morres se de cirrose, teria necessariamente demonstrado antes, além de desnutrição e fraqueza muscular (adinamia) intensa, também alguns dos sintomas clássicos que acompanham o estágio terminal de todas as cirroses. Em breve resumo:

a) Icterícia – em que apresentaria o corpo amarelado.

b) Ascite – em que aumentaria o volume do seu abdome. As calças ficariam com alguns botões sempre abertos e, nas pernas, demasiado grandes; posto que essa ascite, enquanto faz o restante do corpo definhar, aumenta só a cintura do paciente ‒ daí vindo sua designação popular, barriga-d’água.

c) Distúrbios neuropsíquicos – em que teria tido necessariamente agravadas, pelo álcool, disfunções neurológicas (como tremores, sobretudo nas mãos) e obnubilação (perturbação da consciência).

d) Hemorragia digestiva alta – com perda de sangue. Caso essa perda seguisse o trânsito digestivo normal, teria as fezes enegrecidas; e, quando não, vomitaria sangue. Um sintoma que, dado ter pai tuberculoso, logo chamaria a atenção da família, dos amigos, dos colegas de escritório, sobretudo porque são hemorragias geralmente volumosas.

e) Coma – por falência funcional do fígado ou complicações infecciosas.

Sem nenhuma referência qualquer a estes sinais, no relato dos amigos que com ele estiveram nos últimos dias. Nem no dos médicos que o atenderam. Mas não apenas por isso deve-se afastar, definitivamente, a hipótese de ter sido cirrose a causa de sua morte. Sobretudo porque cirrose não causa dor abdominal aguda, sua grande queixa nos últimos dias de vida. Só essa constatação bastaria.

OUTRAS CAUSAS POSSÍVEIS. As dificuldades para um diagnóstico aumentam. Na certidão de óbito da 5a Conservatória (hoje, com registro transferido à 7a Conservatória do Registro Cível de Lisboa, folha 805, assento número 1.609), está obstrução intestinal ‒ sem informações sobre o que teria levado a essa obstrução. Um evento pouco provável pela falta de distensão abdominal, de movimentos peristálticos visíveis ou vômitos.

Seria também razoável, sempre em tese, que pudesse ter tido tuberculose (a doença que vitimou seu pai) ou outros males do pulmão, por ser um fumante inveterado. De charuto e cigarro. E não custa lembrar que teve sempre gripes fortes, pela vida ‒ “dor de garganta”, como diz em seu diário. No início três por ano, ao passar do tempo foram ficando bem mais frequentes. E tantas eram que preferia dormir em um quarto interno do apartamento, longe do frio que no inverno penetrava pelas janelas. Mas tuberculose, mesmo intestinal, jamais daria um quadro agudo como o seu. Disso também não morreu.

No Livro de Registro do Hospital São Luís dos Franceses, o diagnóstico do dr. Jaime Neves é cólica hepática. Mas essa cólica hepática, atualmente chamada cólica biliar, não resulta do consumo de álcool. E nem mesmo tem a ver com o fígado, por decorrer de obstrução na vesícula, sendo sua causa mais comum a litíase. Esse diagnóstico do dr. Jaime Neves, por tudo, merece pouca fé. Caso assim se desse, e mesmo com os conhecimentos científicos da época, já se sabia que, sem intervenção médica, morreria em poucos dias ‒ dada a ocorrência inevitável de septicemia e falência de órgãos. Fosse mesmo esse o mal e, quase certamente, seria operado. Até porque cirurgias de vesícula já eram praticadas, com alguma regularidade, no Portugal daquele tempo. Mais provável é que, ante as incertezas no diagnóstico, tenha o primo doutor anotado uma causa qualquer, no prontuário médico, suficiente para justificar a morte.

CAUSA MORTIS PROVÁVEL, PANCREATITE. A mais provável hipótese médica é mesmo abdome agudo, decorrente de pancreatite. Um quadro, regra geral, não precedido por antecedentes clínicos, como ocorreu com Pessoa. Comum em alcoólicos, essa pancreatite é caracterizada por dor muito forte no abdome, associada com frequência a um quadro de choque grave e distúrbios metabólicos importantes.

Aumentando as chances estatísticas dessa hipótese, considere-se que certamente já não tinha um pâncreas sadio. Sem contar a possibilidade, comum em pancreatites, de ocorrer um quadro de dor tão forte (semelhante à de litíase biliar), no abdome superior, que poderia levar a desmaios ‒ por conta de enzimas pancreáticas que caem na corrente sanguínea, na ca vidade abdominal e/ou na retrocavidade dos epíploos.

Quando o encontraram sem sentidos à porta do banheiro, nos dias que precederam sua morte, talvez tenha tido apenas um episódio de hipoglicemia ‒ frequente em alcoólicos que bebem dias a fio (quase) sem comer ‒ ou delirium tremens, não há como saber; só que, mais provavelmente, terá sido um desses desmaios característicos da doença responsável por sua morte.

Tudo levando a crer que as dores que sentiu nos últimos dias, e de que tanto se queixou, devem ter mesmo sido surtos dessa pancreatite ‒ a causa da morte do poeta. Pessoa morreu? Viva Pessoa.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ DEPOIS DO FIM (5 de 5)

Recife. Encerramos, aqui, esta série.

Pessoa morto, Ophélia Queiroz, seu implausível amor, está com ele no quarto. Só os dois. Então coloca a mão direita dele entre as suas; diz, sussurrando, quase tudo que sempre lhe quis dizer; e apenas o olha, com calma, sabendo que nunca mais fará isso novamente. “Um galo canta”. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e nem olham umas para as outras. Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.”

O quarto começa a ficar claro com os primeiros prenúncios do dia. As freiras voltam e dizem que a família pode chegar a qualquer instante. Pensando em momentos assim Pablo Neruda escreveu, na sua Canção desesperada, que “É hora de partir, oh abandonado”. Ela se levanta e olha pela última vez para aquele rosto que, nos sonhos, pensou ser seu. Uma das freiras põe a mão no bolso do pijama do morto, retira de lá o livrinho de Bocage (prefaciado por da Cunha, e por este ofertado a Pessoa) e lhe dá. Para que o aceite, diz imaginar que Pessoa gostaria ficasse com ela (também esse livro hoje dorme, no Recife).

Ophelia põe o presente na bolsa e sai por onde veio. Em silêncio. Depois, para que ninguém soubesse dessa despedida, declara ter tido notícia de sua morte pelo sobrinho Carlos Queiroz. Segundo ela, então, levei a mão à cabeça, dei um grito, chorei muito, por muito tempo. Só não disse é que chorou antes, e a seu lado. Em poema sem título, de 4/1/1935, Álvaro de Campos escrevera.

Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar.
(…)
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…

PRIMEIRO DE DEZEMBRO, DOMINGO. O caixão é levado à Capela do Cemitério dos Prazeres, para que o velem. Amigos tentaram providenciar os anúncios na noite anterior, mas não circulariam jornais no domingo, nem na segunda pela manhã (2/12), em razão do feriado de 1º de dezembro ‒ data da Restauração Portuguesa (em 1640, quando Portugal deixou de ser dominado pela Espanha, o que se deu em razão da morte de D. Sebastião, em 1578 passando a ser rei D. João IV). Só se consegue avisar os mais próximos. “É domingo e não tenho o que fazer” ‒ escrevera, no Desassossego, em 1/2/1930. Um sábado. Nesse domingo de agora, nada faria mesmo. Seu papel era o de ficar deitado, mudo, imóvel, porque “Velo, na noite em mim, meu próprio corpo morto”. Em Cul-de-lampe, por Álvaro de Campos, diz

Que mais querem? Acabei.
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!

DOIS DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA, Pelas 11 horas, em silêncio, parte o cortejo na direção de um túmulo raso do Cemitério dos Prazeres, onde é posto numa prateleira do jazigo da querida avó Dionísia, pertencente à família. “Fui eu e a minha sepultura.”

Depois diria Negreiros que em um dia, em 1935, “o poeta foi pessoalmen-te enterrar o corpo que o acompanhou toda a vida. Gilles Germain até diz: “Nem Álvaro de Campos nem os outros (heterônimos) assistiram às exéquias. A explicação que se dá habitualmente dessa extravagância é que eles nunca existiram, o que é absurdo”. Enfim, “tudo era (mesmo) absurdo como um luto”.

Montalvor pronuncia a oração fúnebre. Pessoa escrevera 20 anos antes, a pedido do mesmo Montalvor, texto que bem retrataria a cena de agora: “Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse.”

“Reza por mim, Maria, e eu sentirei uma calma de amor sobre o meu ser. Como o luar sobre um lago estagnado.” Nesse diálogo, Pessoa/Fausto pergunta: “Choras? Fiz-te chorar?” Após o que responde Maria: “Sim… Não… Eu choro apenas de te ver triste.” Fausto: “Tu amas-me, Maria?” E ela: “Sinto o teu pavor, quando penso em ti… Ah, como te amo.” Após o que Fausto encerra o diálogo: “Amor! Como me amarga de vazia em meu ser esta palavra… Não, não chores.”

“Morrer é só não ser visto.” A cerimônia, assim a descreve Gaspar Simões, “é discreta e lágrimas poucas ou nenhuma”. “Sem memória de lágrimas”, confirma Luís Pedro Moutinho de Almeida. Os jornais dos dias seguintes noticiarão essa morte com destaque adequado a sua importância, para as letras portuguesas, em 28 anúncios: 12 em Lisboa, quatro no Porto, dois em Coimbra e um em Braga, Faro e Sintra, mais quatro nos Açores e três na Madeira. Com equívocos naturais: como o de que teria morrido na Casa de Saúde das Amoreiras (A Pátria); ou que era formado em letras pela Universidade da Inglaterra (O Século); ou que era autor insigne de Orfeu (assim grafado o título da revista, em O Comércio); ou que teria deixado entre mãos um romance (Diário do Minho).

“A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida há um ponto final.” Nada a lamentar que, para ele, “morrer é continuar”. Afinal, cumpre-se o Destino. “Seja a morte de mim em que revivo.” A deusa da poesia portuguesa, Sophia de Mello Breyner Andresen, lhe dedicou poema (Fernando Pessoa), uma colagem de seus versos — alguns completos, outros tomados como inspiração; e encerra adaptando Escrito num livro abandonado em viagem, “fui como ervas”; mais, literalmente, os dois primeiros versos de Abdicação. Nele, a poetisa chora (trecho):

Teu canto justo que desdenha as sombras
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Foste como as ervas não colhidas.
Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.

Pessoa morreu? Viva Pessoa!

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ O FIM (4 de 5)

Lisboa. Já sem mais esperanças, escreve a última frase e se prepara para partir.

TRINTA DE NOVEMBRO, SÁBADO. “Aquele depois de amanhã”, dos versos de antes, afinal chegara. O “tomorrow” da última frase, que não sabia o que lhe traria, seria o próprio amanhã. O do dia seguinte. O amanhã sem metafísica. “Ah, que manhã é esta?” As horas passam vadias. “A última tarde já não temo.” Essa tarde vai findando “e o poente em cores da dor de um deus longínquo ouve-se soluçar para além das esferas”.

Escurece. “A noite desce, o calor soçobra um pouco, estou lúcido como se nunca tivesse pensado.” No Desassossego, confessa: “Só pedi à vida que me não tirasse o sol.” Nunca mais o veria. E treme ao pressentir o que está para acontecer. “Bem no fundo de tudo, calada, a noite era o túmulo de Deus.” Seja. “Senhor, a noite veio”, “com seu negro mistério roto de astros”. É uma noite de chuva. Seria sua derradeira.

“Fito o meu fim que me olha, tristonho, do convés do Barco que são todos os barcos” e “cerro os olhos lentos e cheios de sono”. Pelas 7 da noite, imaginando que Pessoa está bem e precisando cuidar da mulher presa em casa, na cama, o cunhado volta ao Estoril. No quarto ficam o dr. Jaime Pinheiro de Andrade Neves e um médico do hospital, o dr. Alberto António de Moraes Carvalho.

Logo após a partida do cunhado, chegam os amigos Francisco Gouveia, Vítor da Silva Carvalho e Augusto Ferreira Gomes. Certamente, segundo o hospital, havia lá também um capelão e uma enfermeira ‒ talvez religiosa, dado ser esse hospital então administrado pela Ordem de São Vicente de Paula, sem mais registros de seus nomes. Aos amigos, segundo informam António Quadros e Gaspar Simões, ainda consegue perguntar com voz clara e alta:

“Amanhã a estas horas, onde estarei?”

Não há memória do que lhe tenham respondido. “Partir! Meus Deus, partir! Tenho medo de partir!…”, escrevera tão antes. Pelas 8h da noite, começa a perder a visão. Em um intervalo de lucidez, e pensando ainda em ler o livrinho que tem com ele, murmura suas últimas palavras:

“Dai-me os óculos” (esse óculos hoje dorme, no Recife).

Não lhe deram. Nem haveria serventia para eles. “A morte não virá nem tarde ou cedo.” Andam longe os tempos em que diz “agora que estou quase na morte, vejo tudo já claro”. Ou, como nos Poemas ingleses XII, “a vida nos viveu, não nós a vida”. Então, foi “como se uma janela se abrisse”; e meia hora depois, simplesmente, “meu coração parou”.

Apesar dos muitos relatos que situam a morte por volta das 20h30, no Assento de Óbito está só 20 horas. Afinal, como premonitoriamente escrevera, “o rio da minha vida findou”. O Ícaro de um sonho, como o definiu Montalvor, afinal partia na direção das estrelas.

“Viva eu porque estou morto! Viva!” Reproduzindo versos do passado, agora também ele era “as mãos cruzadas sobre o peito e o gesto parado de não querer nada”. Por conta de um temporal, os telefones do Estoril deixam por horas de funcionar. A irmã doente e o cunhado que a acompanha só depois sabem dessa morte pelo telefone azul na casa, número 356.

Esse cunhado lamenta que tenha estado sem a família naquele momento, pede que marquem o enterro para o fim da manhã de segunda-feira e que providenciem os anúncios fúnebres. Depois, declarará ter tido “um fim desgraçado”.

“Quando se vai morrer, é preciso lembrar-se de que o dia morre, e que o poente é belo e é bela a noite que fica.” Porque “a Morte é o triunfo da Vida”. “Hoje, agora, claramente, ele morreu. Mais nada.” Morreu como viveu, perdido “num grande horror de túmulo e de fim”.

Os amigos se vão e o corpo fica no quarto, sem mais ninguém. As freirinhas do hospital, sabedoras da relação que tivera com Ophelia Queiroz, ligam e perguntam se ela não quer se despedir do amigo sem que outros a vejam. Essa informação não deve causar tanta estranheza, pois muita gente sabia disso. Na família de Ophelia, com certeza. E, também, no grupo de amigos de Pessoa. Tanto que Montalvor chegou a flagrar o discreto namoro dos dois.

Almada Negreiros, na própria noite do enterro de Pessoa, fez o mais famoso desenho de seu rosto; e deu a gravura de presente, nessa mesma noite, a Carlos Queiroz ‒ o depoimento é da sobrinha-neta de Ophelia, Maria das Graças Queiroz. Sendo, Carlos, sobrinho de Ophelia. Certo que, não soubesse da relação, e jamais lhe daria essa gravura (hoje dormindo, no Recife). Que acabou sendo a capa da biografia que escrevi sobre ele (Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, Ed. Record).

Não sendo assim desarrazoada a hipótese de que uma das freiras pudesse mesmo saber daquele romance interrompido. Pouco depois Ophelia chega e a levam para o quarto por uma entrada lateral, de serviço. A porta é trancada e os dois ficam sozinhos. “Velamos as horas que passam.”

Então põe a mão sobre a testa do amado e treme, talvez lembrando versos que lera em The mad fiddler: “Oh, tua mão no meu cabelo, mão de mãe repousa.” Talvez seja só coincidência, mas Almada Negreiros escreveria, depois, quase essas palavras: Mãe! Passa a tua mão sobre a minha cabeça!/ E deixa-me morrer com ela sobre mim. Em L’ inconnue, do mesmo The mad Fidller, Pessoa quase antevira essa cena (trechos):

Deixa que a tua mão arrume
O meu cabelo para trás.
Dando-me alívio!
Deixa que meu repouso se agite.
Descanso verdadeiro, venha logo!

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ O HOSPITAL (3 de 5)

Lisboa. Está cada vez pior. Manassés, seu vizinho barbeiro, lhe faz a última barba. Alguns amigos estão com ele.

Pessoa, mal, se prepara para ir ao hospital. Então vai até a estante e retira de lá o menor livro (9 por 13 centímetros) que encontra, Sonetos escolhidos, de Bocage ‒ que, em 1921, lhe havia sido dado “com o respeito que lhe merece o seu talento” pelo prefaciador da obra, o amigo íntimo (Alberto) da Cunha (Dias). Põe o livrinho no bolso direito. Está pronto. Uma automaca (maca montada em automóvel, predecessora das ambulâncias de hoje) o leva embora dessa casa à qual jamais voltaria. “Perdi a esperança como uma carteira vazia.” Em A um revolucionário morto, disse:

Talvez a vitória seja a morte, e a glória
Seja ser só memória disso
A vida é só tê-la, vivê-la e perdê-la.

HOSPITAL SÃO LUÍS DOS FRANCESES. “Trazei pajens; trazei virgens; trazei, servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a Morte assiste! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada de mirtos (ramos de murta). Vai o Rei a jantar com a Morte no seu palácio à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.”

Mas sua vida nem sempre imitou a arte; que o “palácio antigo”, com que sonhou, não fica à beira de nenhum lago. Nem está próximo de qualquer montanha. Trata-se de um dos melhores e mais caros hospitais particulares da Lisboa daquele tempo, o São Luís dos Franceses. Fica no Bairro Alto de São Roque, na Rua (Simão da) Luz Soriano 182 ‒ lugar calmo e sombreado, com bancos de ferro ao redor, perto da casa em que mora e a menos de um quilômetro do apartamento em que nasceu.

É conduzido ao quarto 30 (mais tarde, renumerado para 308) ‒ o mesmo em que morrerá, depois, o amigo Almada Negreiros (em 1970). Tão distante do que pressente, em O marinheiro, “um quarto que é sem dúvida num castelo antigo”. Diferente do verão, a luz é pouca naquele quarto acanhado ‒ 3 metros por 4, cama de ferro como as de todos os hospitais, um armário alto, outro pequeno com telefone por cima, sofá para dois lugares, cadeira e mesa de cabeceira modernosa.

Entre cama e janela fica o rendado miúdo de um mosquiteiro, embaçando a paisagem, cenário perfeito para verso que antes escrevera ‒ “Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são”; ou, quase as mesmas palavras do Primeiro Fausto, “há entre mim e o real um véu”.

As paredes, até 2 metros, são limpas, pintadas com uma tinta escura; acima disto, e no teto, branco imaculado. Sem um único quadro. Hoje esse quarto tem, pela frente, o elevador que leva ao primeiro andar. A parede é clara e áspera, salpicada por cimento até 2 metros de altura; e, a partir daí, lisa como antes.

O teto é de gesso. Um sofá para duas pessoas, bem antigo, fica entre a cama e uma janela que tem grade por fora. Armário, mesa de cabeceira austera e três cadeiras comuns de madeira completam a decoração. Sem grandes mudanças, hoje, em relação à decoração daquele tempo. Em Ritos iniciáticos, diz

Pergunta ‒ De onde vens?
Resposta ‒ Não sei.
P ‒ Aonde vais?
R ‒ Não me disseram (sei).
P ‒ O que sabes?
R ‒ O que esperei (Nada).
Mestre do Átrio ‒ Basta que me digas sim.
O Neófilo ‒ Sim
Mestre do Átrio ‒ A paz seja contigo.

O cenário do festim está pronto. Em vez de pagens, virgens ou servos, é acompanhado apenas por austeras enfermeiras. Sem música ou dança, há lá só aquele silêncio que prenuncia eternidade. Luís Pedro Moitinho de Almeida confirma, citando depoimento de amigos: Não se lhe ouvia um queixume. Só dizia o que era preciso. “Quem sabe se morrerei amanhã?”

Pressente o desastre inevitável e pede um lápis; é que, deitado na cama, tem mesmo que recorrer a ele ‒ dado não lhe ser possível usar o bico da pena com que quase sempre se escrevia, naquela época, por só funcionar com essa pena para baixo. E por não haver onde repousar o tinteiro. Esse lápis a família guarda, ainda hoje. Então põe no peito sua inseparável pasta preta, sobre ela um papel e, em inglês, deixa sua última frase escrita:

I know not what tomorrow will bring (Eu não sei o que o amanhã trará).

Mesmo no inglês corrente do seu tempo, a frase deveria ter sido I don’t know what tomorrow will bring. O uso intencional desse estilo arcaico, com know not, acentua o sentido literário que quis lhe dar.

Já para Pizarro, Ferrari e Cardiello, terá sido “eco evidente de um epigrama de Palladas de Alexandria (Today let me live well; none knows what may be to-morrow), publicado no primeiro volume de Greek anthology (1916) — um livro que estava nas estantes de Pessoa. Para Jorge Monteiro, em outra versão, escreve a frase evocando “conscientemente as Escrituras (Provérbios, 27:1) que dizem: “Não te felicites pelo dia de amanhã/ Pois não sabes o que hoje vai gerar”.

Segundo sua sobrinha Manuela Nogueira, não foi a primeira vez que disse essas palavras. A confirmar esse depoimento, bom notar que quase reproduz versos incompletos, escritos em 28 de outubro de 1920, depois encontrados na Arca:

I, that know not if I shall live tomorrow,
How but my hope of that live I today.

Não literalmente,

Eu, que não sei se viverei amanhã
Nada tenho senão a esperança de viver hoje.

No Desassossego, pressente “a tortura do destino!” e se pergunta: “Quem sabe se morrerei amanhã?” Essas palavras só agora estavam certas. E todos o sabiam, inclusive ele próprio.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ O QUADRO PIORA (2 de 5)

Lisboa. Não está bem, todos vêem. Sigamos no relato de seu fim.

VINTE E SETE DE NOVEMBRO, QUARTA-FEIRA. Depois de um dia comum de trabalho, já quase noitinha, vai ao Martinho da Arcada. Premonitoriamente, desse Martinho disse um dia Sá-Carneiro: “Martinho… Não sei por que, mas esse café ‒ não os outros cafés de Lisboa, esse só ‒ deu-me sempre a ideia dum local onde se vem findar uma vida: estranho refúgio, talvez, dos que perderam todas as ilusões”.

No Martinho da Arcada, Pessoa vê Almada Negreiros entrar e, demasiado cansado, não se levanta para o cumprimento habitual. Logo senta-se, com eles, Gaspar Simões (que viria, depois, a ser seu primeiro biógrafo). Os amigos estranham o vestir com desleixo, com laço na gravata preta por fazer, tudo tão diferente dos bons tempos. Está agitado e pigarreia muito. Pesam-lhe no corpo todas as dores de todas as angústias. E uma febre que não passa.

“A hora, como um leque, fecha-se.” A irmã Teca faz aniversário no Estoril; mas uma viagem até lá para o jantar, considerando seu estado, era demais ‒ mesmo sabendo que, com essa ausência, rompia uma tradição de muitos anos. Pede ao vendedor de jornais que, em seu nome, mande-lhe um telegrama de parabéns; dando-se que esse homem guardou o dinheiro no bolso e não passou telegrama nenhum.

À noite, bem mais perto, prefere estar na casa do amigo Armando Teixeira Rabelo. Sente cólicas e não dá ciência disso aos presentes. Segundo o querido António Quadros (que com ele fez a revista Orpheu), “teve nesta noite uma grave crise hepática” (para o primo Eduardo Freitas da Costa foi na madrugada de 26 para 27).

Ao sair, cambaleia e ri de uma maneira estranha que Simões imagina decorrer do álcool. Olha o céu, como quem procura a primeira estrela que eu vejo, para pedir o impossível; e caminha na direção da rua dos Douradores, talvez à procura dos rastros de Bernardo Soares. Seu estado é visivelmente grave. Em Insônia, Álvaro de Campos, premonitoriamente sugere

Ó madrugada, tardas tanto… Vem…
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta…
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste.

VINTE E OITO DE NOVEMBRO, QUINTA-FEIRA. “A manhã rompeu, como queda. Desenganemo-nos da esperança. Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio.” O barbeiro Manassés vai ao apartamento, como faz todos os dias, e se horroriza com seu estado físico. Ficam em silêncio, como se Pessoa não tivesse ânimo sequer para conversar. Ou como se nada mais tivessem a dizer.

Apesar disso, mais tarde, consegue se aprontar e ir ao trabalho. O cunhado o procura, preocupado por não ter ido ao aniversário da irmã na noite anterior. Perguntado sobre o telegrama, diz que não chegou; e, vendo-o disposto, imagina estar bem.

No fim do dia, Pessoa volta para casa no seu caminhar tranquilo de sempre. “Sem cambalear”, confirmam António Seixas e Carlos Bate-Chapa, que lembram de tê-lo cumprimentado. À noite, está novamente só. Sente dores e lamenta não ter a quem recorrer. Mas, talvez confiando nas previsões do horóscopo que fez para si mesmo, imagina que logo estará melhor. “Sossega, coração inútil, sossega! Sossega, porque nada há que esperar.”

No ano anterior, em 9 de agosto, escrevera: “Hoje é a quinta-feira da semana que não tem domingo… Nenhum domingo.” Sua última semana seria aquela. E era quinta-feira, como no verso. Houve o domingo dessa semana, claro, “um domingo às avessas” do qual Pessoa já não seria testemunha. “Sempre alguém ao domingo”, ele não, “não no meu domingo”. Seu último dia seria sábado. O depois de amanhã daquela quinta-feira. Em Adiamento, se vê

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
O porvir…
Sim, o porvir…

VINTE E NOVE DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA. Esse porvir, tão ansiado, afinal se aproxima. “Meu Deus, que fiz eu da vida?” Mais uma vez está sozinho no apartamento. “A vida não tinha dentro.” A irmã continua no Estoril com uma perna quebrada. Vem-lhe a primeira cólica, bem cedo.

A vizinha de porta, Virgínia Sena Pereira, que o atende nas ausências dessa irmã, diz à família que seu quadro exige cuidados. Não há consenso sobre essa data; segundo o médico Taborda de Vasconcelos, o aviso teria se dado dois dias antes; ou na véspera, para o primo de Pessoa Eduardo Freitas da Costa e o sobrinho de dona Virgínia (o poeta Jorge de Sena).

Chama-se outro primo de Pessoa (e seu médico), o dr. Jaime Pinheiro de Andrade Neves ‒ “um inútil, diz uma das pessoas próximas”, lembra Robert Bréchon, sem identificar o autor do comentário. Esse primo decide levá-lo ao hospital.

Àquela hora, com ele, também estão o amigo íntimo Armando Rabelo; um companheiro do escritório, Francisco Gouveia; e Carlos Eugênio Moitinho de Almeida, proprietário da Casa Moitinho de Almeida (em que Pessoa trabalhava).

Pede para fazer a barba e chamam seu vizinho Manassés. Lembrando que o telegrama que pediu fosse pasado não chegara, no aniversário da irmã, encarece que um dos amigos lhe passe outro. “Vou fazer as malas para o definitivo.” Veste pijama de calça comprida e blusão, amarrado com uma fita na cintura.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ O CANSAÇO (1 de 5)

Lisboa. A hora vem. “No claro dia, agora, frente a frente, leiamos a nossa sina (todos os textos aspeados, aqui, são de Pessoa).” Afinal, a hora de decifrar o “doloroso enigma da vida” chega e está pronto. “Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória da minha desilusão como se fosse a de um grande sonho.” Só que “é mais dolorosamente que isso”. É “o mal-estar de estar vivendo o cansaço de se ter vivido”; “o mal-estar de ter que viver, ainda que noutro mundo, o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada”.

Os primeiros ventos quentes anunciam a primavera de seu último ano, 1935. Pressente que não verá outra. “Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira.” Pouco antes escrevera quase as mesmas palavras: “Quando tornar a vir a Primavera, talvez já não me encontre no mundo.” Assim seria. Em 2 de junho, escreve mais um poema contra a ditadura de Salazar, como quem tem já certeza do fim; e, nele, lamenta o destino de Portugal como se olhasse para um espelho, ” Pesa em nós o passado e o futuro/ Dorme em nós o presente”.

Depois da primavera vem o verão, claro; mas, logo, também “esse verão apagou-se”; e já não há, nos jarros das janelas de Lisboa, os lírios, os cravos, os manjericões de folhas miúdas e as alfavacas de folhas maiores do tempo em que nasceu. “As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente”. E segue no meu caminho.

“Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz ‒ tudo isso irá no outono, como fósforos gastos ou papéis amarrotados. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, tudo vai no outono, na ternura indiferente do outono.” Um “outono que começa em nós”, “como um vago sono sobrevindo dos últimos gestos de agir”.

Fisicamente, todos veem, não está bem. Andava amargo, diz António Manassés ‒ filho do barbeiro que fazia, diariamente, sua barba (morava na mesma Rua Coelho da Rocha, quase em frente a seu edifício). Em minuta de carta a Casais Monteiro, que fica incompleta, avisa que nada mais destinará “para (a revista) Presença ou para qualquer publicação ou livros”.

Começa, então, aquele que seria seu derradeiro novembro. Bem antes, em 22 de abril de 1922, encerrara poema dizendo: “Hoje não espero nem o muito encanto/ De haver esperado, quero o fim.” Agora, era o fim dessa espera.

Publica os três últimos artigos: no Diário de Lisboa (dia 11), “Poesias de um prosador”, sobre livro do amigo Alberto da Cunha Dias; no mesmo número 3 da revista Sudoeste, “Nota ao acaso”, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos, discutindo a questão da sinceridade na arte; e “Nós, os de Orpheu”, em seu próprio nome, exaltando os antigos companheiros da revista que dirigiu (junto com Sá Carneiro), e encerra dizendo “quanto ao mais, nada mais”. Os amigos não se dão conta de que falava de si próprio.

Escreve, também, os últimos poemas em outras línguas. Em inglês, The happy sun is shining (O alegre sol está brilhando), um título incompatível com seu estado de espírito; e, em francês, “Le sourire de tes yeux bleus” (O sorriso de teus olhos tristes), sem que se conheça o/a destinatário/a dos versos. Em sua própria língua, 11 dias antes de morrer, ainda escreve um derradeiro poema (Elegia na sombra), que encerra dizendo:

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Só a prolixa estagnação das ágoas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das águas.

VINTE E SEIS DE NOVEMBRO DE 1935, TERÇA-FEIRA. Está sozinho em casa. Tem a primeira crise, com dores abdominais e febre. Nada ainda muito grave, tanto que dia seguinte estará melhor. E continua, em sua rotina exasperante, como se nada lhe houvesse acontecido.

Mas “hora a hora a expressão me falha. Hora a hora a vontade fraqueja. Hora a hora sinto avançar sobre mim o tempo. Hora a hora me conheço, mãos inúteis e olhar amargurado, levando para a terra fria uma alma que não soube contar, um coração já apodre- cido, morto já e na estagnação da aspiração indefinida, inutilizada”. O essencial é que “estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer”. Em poema sem título (de 4/11/1914), diz

Que é feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,
Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

P.S. Uma explicação ao amigo leitor. Nesses próximos dias, tenho série de compromissos em Portugal. Conferências (a primeira na Universidade de Aveiro); lançamento da edição portuguesa do livro de Maria Lectícia (A mesa de Deus), pela editora Quetsal; posse na Academia Portuguesa de Letras (Academia das Ciências de Lisboa), entre ouros afazeres. Por não ter sentido longe de casa ficar escrevendo colunas, e para não perder o contato com quem lê, deixo pronta essa pequena série de artigos. Espero que o amigo leitor, de alguma forma, compreenda e aprecie. Até logo mais.

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CONVERSAS DE ½ MINUTO (32) ‒ ESCRITORES

Mais conversas, hoje só com escritores, em livro que estou escrevendo (título da coluna).

GILBERTO FREYRE, escritor. Assumiu a Cadeira 23 da Academia Pernambucana de Letras em 28/10/1986. Leu o Discurso de Posse, com mais de 100 páginas, sentado na mesa onde ficam as autoridades. E não em pé, no púlpito, como é usual. Na sequência, viria o Discurso de Recepção. A ser feito por seu mais íntimo amigo, o sonetista parnasiano Waldemar Lopes. Quando Lopes acabou de saudar as autoridades, e iria começar sua fala, Gilberto agarrou o microfone do presidente e disse

– Acaba logo com isso, Waldemar, que minha bunda está doendo.

* * *

Apesar de brigar com Oswald de Andrade, sempre o elogiava, reconhecendo ter sido o único a permanecer fiel aos ideais da semana de 22. E ele próprio contou essa história, numa conferência. Quando morreu o cangaceiro Virgulino Ferreira (Lampião), Oswald reclamou

– Puxa, e por que não aproveitaram para também matar Gilberto Freyre?

HERMILO BORBA FILHO, romancista. Quarta feira, 26/6/1976, ligou

– Tudo bem?, Zé Paulo.

– Tudo, Hermilo.

– É o seguinte. O coração está ruim, vou morrer até a próxima quarta e preciso muito falar com você.

– Pare com isso, amigo. Seja como for, na volta pra casa passo aí.

O apartamento ficava na Rua dos Navegantes. Conversamos no terraço.

– Como vou morrer logo, preciso que você redija meu testamento,

Deu os comandos. Anotei. Passamos a falar sobre a morte, como se fosse algo natural. E, para ele, era mesmo. Perguntei

– O que significa isso para quem, como você, não acredita em Deus? É o fim de tudo? Ou vai ficar, no exemplo e nas ideias?

Nesse preciso instante, explodiu na rua um transformador da rede elétrica. O bairro inteiro ficou às escuras. E ele

– Combateremos na sombra.

Reproduzindo a sentença do general Leônidas, nas Termópilas. Fiquei em silêncio. Admitindo fosse apenas uma frase de efeito, por conta da falta de luz. Mas, como no verso de Drummond (O caso do vestido), “boca não disse palavra”. E compreendi ser resposta à minha pergunta. Para bom entendedor, meio silêncio basta. Uma grande resposta. Coisa dele. Ficamos em silêncio muito tempo, ainda. Só nos olhando. E ele ria, dava para ver no branco dos dentes. Até que falei

– É tudo?, Hermilo.

– É tudo, Zé Paulo.

– Adeus.

– Adeus.

Um adeus diferente dos de todo dia, esse era verdadeiramente definitivo. Então lhe dei um beijo na testa e fui para casa. Na mesma noite, redigi o testamento. Hélio Coutinho, tabelião, lavrou no livro dia seguinte. Ele assinou. Sexta, recebeu os traslados e deixou nas mãos de sua companheira, Leda Alves. Sábado, foi para o hospital. E morreu na quarta seguinte, como prometeu. Hermilo era homem de palavra.

JORGE LUIS BORGES, romancista. Numa entrevista (4/2/1987) para Roberto Dávila, declarou

– Quase não li romances. Fora Joseph Conrad que, para mim, é O Romancista.

– Nem mesmo Cem anos de solidão?

– Completei só os primeiros 50. Mas é um excelente livro, eu acho.

Em maio de 1976, escolhido pelo Comitê da Academia Sueca na reunião preparatória em maio, acabou não sendo confirmado na de novembro (perdeu o Prêmio Nobel de Literatura para Saul Bellow). Porque, em 22/09 desse ano, visitou o ditador Augusto Pinochet. E, conservador, disse numa fala infeliz “Não sou digno da honra de ser recebido pelo senhor, Presidente… Na Argentina, Chile e Uruguai estão sendo salvas a liberdade e a ordem. Isso acontece num continente anarquizado e solapado pelo comunismo”. A partir daí, nunca mais seria lembrado. E o comportamento de Gabriel García Márquez (o tal dos Cem anos…, está no seu livro Crônicas), é exemplar

– Nada nos agradaria tanto a nós, que somos ao mesmo tempo seus leitores insaciáveis e seus adversários políticos, sabê-lo por fim libertado de sua ansiedade anual.

Borges morreria, 10 anos depois, angustiado e cego. Em metáfora, é como se tivesse desistido de ver o mundo por seus olhos tristes.

PAULO FRANCIS, articulista. Almoço no restaurante do hotel Ouro Verde, só nós três. Paulo, querendo agradar Millôr Fernandes,

– Você é o maior escritor vivo da língua portuguesa.

– E por que tanta restrição?, Paulo.

– Não entendi.

– Por que vivo? E por que só da língua portuguesa?

ROBERTO DA MATTA, antropólogo. Dei parabéns por ter recebido o prêmio Machado de Assis (votei nele), da ABL, e respondeu

‒ Você é o melhor amigo de infância que fiz depois de velho.

RUBEM BRAGA, cronista. Era de Cachoeira de Itapemirim, como Roberto Carlos. E andou pelo mundo. Até dirigiu a Folha do Povo, aqui no Recife, durante alguns meses. Após o que foi para o Rio, de onde nunca mais saiu. No fim já não falava, por conta de um câncer na laringe. Aniversário de Millôr (16/08/1990), na cobertura de Luiz Gravatá – Rua Barão da Torre (Ipanema). Ao subir as escadas, que levavam ao salão da cobertura, cada um de nós via, em frente, Rubem com sua garrafa de Johnny Black. E ele acenava, rindo, em uma espécie de saudação. Como já não podia conversar, a gente respondia de longe com outros acenos. E a festa continuou, em sua volta. Até quando Chico Caruso inventou de promover um concurso de saltos ornamentais em piscina rasa. Deu o primeiro salto, quebrou o nariz ao bater no fundo e sujou a piscina com sangue. Após o que fomos todos embora. Rubem, encharcado com sua bebidinha, já não conseguia nem andar. Preferiu dormir ali mesmo. E, sem maiores preocupações tirou a roupa, como fazia todas as noites, e deitou num sofá. Dia seguinte, sobe Nerinha para arrumar o local. Foi quando viu nosso cronista encolhido, no tal sofá, e gritou

‒ Seu Gravatá, tem um homem nú aqui em cima.

Rubem acordou com a gritaria, vestiu-se e foi para seu apartamento bem perto, na cobertura do Edifício Barão de Gravatá (Praça General Osório). A partir desse dia, escondeu-se do mundo. Dois dias antes da última internação, no Hospital Samaritano, reuniu-se com os amigos Edvaldo Pacote, Moacir Werneck de Castro e Otto Lara Resende, para uma despedida. E, em 19/12/1990, acabou. Só depois se vendo que aqueles cumprimentos, na festa, foi o jeito que encontrou para dizer adeus aos amigos. Viva Rubem Braga!

* * *

Todas as manhãs se comunicava com Millôr Fernandes (os apartamentos eram próximos), não por telefone mas por sinais com os braços que aprenderam na Marinha. Millôr

– B/o/m/d/i/a/!

E Rubem, exagerado como sempre, mexia os braços meia hora para responder

– B/o/m/d/i/a/ m/e/u/ c/a/r/o/ c/o/l/e/g/a/ d/e/ p/r/a/ç/a/ e/ d/e/ m/a/d/r/u/g/a/r/!

RUY CASTRO, da ABL. Carioca da gema, foi contratado como jornalista para passar pouco tempo em São Paulo e voltou só 16 anos depois. Perguntei

– Por que demorou tanto?, amigo.

– É que o Rio seduz e São Paulo suborna.

TRAVA-LÍNGUAS. Num livro de Luisa Ducla Soares (Destravalinguas), há curiosos trava-línguas típicos de Portugal, como esse

Era uma velha relha, bufelha,
Saracotelha e cotrimbelha
Casada com um velho relho,
Bufelho, saracotelho
E cotrimbelho.
Diz a velha relha, bufelha,
Saracotelha e cotrimbelha
Ao velho relho, bufelho
Saracotelho e cotrimbelho:
Vamos à caça raça, bufaça,
Cotrimbaça de um coelho
Relho, bufelho
E cotrimbelho?

ZUENIR VENTURA, da ABL. Em seu apartamento de cobertura estava, para um jantar, Miguel Souza Tavares ‒ autor de Equador, com milhões de exemplares vendidos. Só para lembrar Zuenir escreveu Inveja (numa coleção sobre os 7 pecados capitais). Miguel, falando no celular, não percebeu um batente no jardim, tropeçou e quase caiu lá de cima. O que seria morte certa. Zuenir, assustado, disse já antever a manchete dos jornais no dia seguinte

‒ Autor de Inveja mata autor de sucesso.

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TODOS, TODAS, TODES

O Conselho Nacional de Educação (CNE) decidiu no começo deste mês, ao tratar do tema Linguagem Neutra, que sua adoção “alteraria a estrutura do português que aqui se fala”. A conclusão foi de que ““trata-se de um fenômeno ainda incipiente”, no Brasil de hoje, e “só pessoas ligadas ao núcleo em que nasceu usam” tal linguagem.

O Presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, também contra essa Linguagem, declarou que “os documentos oficiais devem seguir as normas oficiais vigentes”. Ainda, que “professores não podem obrigar alunos a usar essa linguagem, por nada haver que obrigue a isso”.

Trata-se de tema complicado. Por haver grupos, socialmente bastante ativos, que consideram ser a explicitação do preconceito. Sobretudo sexista. Não muitos ainda, graças. Um dogma, para esses, que sequer admitem questionamentos.

A posição da ABL contra essa Linguagem Neutra é, por tudo, corretíssima. E cumpre ver a questão com mínimos de bom-senso. Nesse sentido, alinho alguns apontamentos que fui buscando, pelo caminho, aqui ou ali. Do ponto de vista da linguagem, cumpre anotar quatro regras bem simples:

1. Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos, quanto femininos, independentemente da letra final da palavra: agradável, doente, feliz, inteligente.

2. Algumas escolhas, dessa linguagem, não fazem qualquer sentido. Como dizer PresidentA. Por não haver nenhum PresidentO, no cargo. Há só PresidentE, que já é uma palavra neutra. Usada para qualquer gênero, O Presidente, A Presidente.

3. Terminar uma palavra com a letra “E” não importa seja, necessariamente, neutra. Basta ver a alface, o elefante.

4. Na essência, não faz diferença mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos, em busca de uma linguagem neutra. Que o gênero, regra geral, não é definido pela palavra, mas pelo artigo que acompanha essa palavra: o motorista, o poeta, a ação, a impressão.

Para conseguir a neutralidade, por isso, precisaríamos criar também um artigo neutro. Só que a língua portuguesa não aceita esse gênero neutro. Seria necessário, então, mudar o próprio idioma, todo ele, pra combater o dito preconceito e usar a tal linguagem neutra. É muito. Não vale a pena.

Em resumo, perdão para quem pense diferente, melhor continuar tudo como está. E deixar esse debate para mais tarde.

P.S. Mexer na língua é sempre complicado. Em 1938 se discutia, na Academia Brasileira de Letras, o Acordo Ortográfico entre Brasil e Portugal. E o pernambucano Manuel Bandeira era contra. Certo dia, irritado com um debate sobre a eliminação de todos os acentos diferenciais, saiu mais cedo e os repórteres perguntaram o que achava daquilo tudo. Ele respondeu, na hora,

‒ Por mim, tudo bem; que, para o poeta, a forma é fôrma.

Deu um risinho e completou

‒ Agora escrevam isso aí sem o acento diferencial.

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LISÓTIMA

Em cada cidade vivem duas cidades, uma por dentro da outra. A primeira, e mais evidente, é a dos Cartões Postais ‒ arquitetura, igrejas, museus, parques, ruas, mares, rios. Carlos Pena Filho, nosso Poeta do Azul, até disse isso em belo poema (Olinda)

Olinda é só para os olhos
Não se apalpa é só desejo
Ninguém diz é lá que eu moro
Diz somente é lá que eu vejo

Só que, ao lado desta cidade feita para se ver, há também uma outra, que habita aquela primeira ‒ com gente, lugares especiais, um jeito próprio de ser, as conversas, restaurantes (não os frequentados por turistas), mercados públicos de bairro ‒ entre eles, nosso preferido é o de Campo de Ourique. A cidade é a mesma. Só que diferente. E mais calorosa é a segunda, por ser povoada por amigos.

Saramago (em Palavras para uma cidade) até diz isso de maneira diferente: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória do interior do qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro… O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar”.

Com frequência nos perguntam por que tanto gostamos de Lisboa. A Olissibona dos Romanos, até quando foi tomada pelos Mouros, passando a ser Aschbouna. Mas só até 1147 quando, após cerco de três meses, foram afinal vencidos. E o nome da cidade passou a ser o de hoje. Aquela mesma de que falava Camões, nos Lusíadas (Canto 57), “E tu nobre Lisboa, que no mundo/ Facilmente das outras és princesa”. E Fernando Pessoa define (em Lisbon Revisited I) como “uma eterna verdade, vazia e perfeita”. A que o compadre Marcos Vilaça, confrade querido nas Academias Pernambucana, Brasileira e Portuguesa de Letras, chama não de Lisboa, mas de Lisótima.

As respostas óbvias são o pouco tempo de avião para chegar lá, pouco mais de 6 horas. Ou o fato de pertencer a um belo país. Ou o clima, com quatro estações bem definidas, permitindo à noite usar paletós ou suéteres. Ou por ser realidade bem distinta da do Recife, com horários para dormir e acordar que são outros. Só que é mais. Tentarei explicar em alguns exemplos.

CULINÁRIA. É única. Dona Lectícia diz ser a da França, mais famosa. Com muito molho e misturas inesperadas. Só que, depois de poucos dias, já ninguém aguenta mais. Quer comida caseira. Como a de Portugal, em que tudo vem na proporção certa. Trata-se, para ela, da melhor do mundo. Depois da nossa do Nordeste brasileiro, claro. E é mesmo uma experiência inesquecível. Peixes, por conta da temperatura (fria) da água, são mais rijos e mais saborosos. Mesmo quando da mesma espécie, como por exemplo a Garoupa. Carnes têm cortes que não são os mesmos. E variedades muitas. Num restaurante, certa vez, provei 18 tipos incluindo rã, cachorro, cavalo, macaco e zebra (a pior de todas, seca demais). Crustáceos que não temos ‒ percebes, búzios, lavagantes, amêijoas (melhor é à Bulhão Pato). Tem também lampreia, mas essa espécie de peixe ou você ama, ou você odeia (nosso caso). Siris enormes, Santolas, Sapateiras. E camarões: desde bem grandes, como o Tigre; até o melhor de todos, de uma praia juntinho do Porto, o Espinho.

FAIXA DE PEDESTRES. Você pode atravessar as ruas, nas faixas de pedestres (conhecidas como passadeiras), sem susto. Carros param, inclusive os apressadinhos, todos, até que você passe. Em respeito aos que andam a pé. Chance zero de isso não acontecer.

FANTASMAS. Toda cidade tem os seus. Os do Recife moram no Solar de Santo Antônio dos Apipucos, onde viveu Gilberto Freire, lá onde servia seu famoso conhaque de Pitanga. Sem consenso sobre ser mesmo bom ou não. Em Olinda, num casarão que pertencia ao santeiro Elias Sultanum, colado ao Mercado da Ribeira. Só para lembrar construído, por volta de 1.560, onde se vendia carne, farinha, peixes e escravos. Em Lisboa, o poeta Fernando Pessoa. Prova disso é que o encontrei passeando na Rua Garret, perto da Livraria Bertrand. E decidi segui-lo, para ver onde iria. Depois de olhar para trás algumas vezes, dobrou a Rua Ivens e desapareceu numa corrida em grande velocidade. Dona Lectícia diz que era só um sósia, e desapareceu foi com medo de ser assaltado. Respondi que ela não entende nada de fantasmas.

FILAS. Nas ruas, há barracas onde se vende frutas o ano inteiro. Sardinhas, nos meses quentes. E castanhas portuguesas, quando faz frio. Só lamento é que não haja milho, cozido ou assado, por lá. Mas, quem quiser comprar algo, tem que entrar numa fila. E esperar. Que só será atendido quando chegar sua vez. Sem hipótese de acontecer o que se vê por aqui com todos passando, uns na frente dos outros, como se cada um fosse mais importante que cada outro. Com os carros, acontece o mesmo. Sobretudo quando há filas grandes, aqui com os espertinhos de sempre ‒ que podem ser vistos, em nossas ruas, aqueles que vem por fora dela e entram em sua frente, furando a fila, no exercício de uma espécie de Ética da Esperteza. E, lá, não.

LOMBADAS. Não são como as do Recife, que parecem feitas só para quebrar os amortecedores dos carros. Quase sempre sem pinturas no chão ou placas nas calçadas, avisando. E deveria, se o objetivo fosse mesmo diminuir a velocidade dos veículos. Em troca, temos pequenas elevações e, a seguir, algo como um ou dois metros para, no fim, voltar a essa rua. Tudo bem suave. Quem quiser saber como é vá ao Shopping RioMar que, bem na entrada, vai ver uma dessas.

MOTOS. Não há tantos acidentes de motos, por lá. Ou quase não há. Vedado ziguezaguear, entre faixas, sob pena de multa cara, 1.250 euros (quase 10 mil reais). Aqui, no Recife, elas cortam os carros por todos os lados ‒ à direita, à esquerda, às vezes até por cima e por baixo (infelizmente). Parando em sua frente, nos sinais, como se fosse algo natural ou tivessem direito a isso. Diferente do que se dá, em Lisboa, quando motos ou bicicletas são considerados transportes públicos. Em princípio, podem trafegar só nas faixas dos ônibus (hoje, há 42 quilômetros dessas faixas em Lisboa). Sem riscos de virem para cima dos carros. O motociclista perde um pouco de tempo, no trânsito; mas, em compensação, não perde braços, esperanças, pernas, sonhos, a própria vida.

NOMES. Os dos bairros são especiais: Alcântara, Alfama, Bairro Alto, Benfica, Graças, Lapa, Madragoa, Mouraria, Olivais, Pastelo, São Vicente. Ou das ruas: Beco da Bicha, Beco da Serra, Campos das Cebolas, Largo da Graça, Largo das Portas do Sol, Largo do Chafariz, Pátio das Damas, Rua da Alegria (onde morava Duda Guennes), Rua da Bela Vista, Rua da Cozinha Econômica, Rua da Mãe D’água, Rua da Prata, Rua da Rosa, Rua da Voz do Operário, Rua das Chagas, Rua das Flores, Rua do Ouro, Rua do Paraíso, Rua do Salvador, Rua dos Sapateiros, Travessa da Água da Flor, Travessa da Esposa, Travessa da Portuguesa, Travessa do Fala Só. Como se fosse quase poesia. Sem “medo que hoje se chama de dr. Fulano de Tal”, salve Bandeira.

RADARES. Nas estradas (e nas cidades), em Pernambuco e no resto do Brasil, quando aparece um radar, o motorista reduz a velocidade; e, assim que o passa, então acelera. Lá, não. Dois exemplos. Um na estrada à beira mar que vai para Cascais. Há nelas muitas dezenas de sinais, até chegar ao destino. Sem razão aparente para existir e ligando nada a coisa nenhuma. Velocidade máxima, nesse caminho, é (na média) 60 quilômetros. Dando-se que, se alguém passar ali a mais que os tais 60 quilômetros, o próximo sinal estará fechado. O carro é obrigado a parar. E assim por diante. Conclusão, melhor é ir na velocidade indicada que acaba chegando antes. Multas para quem desobedecer são frequentes e triplicaram, desde a instalação do sistema. Quem tiver pressa, melhor pegar a Rodovia A5 pagando pedágio de 1,50 euros (menos que 10 reais). Outro exemplo é o dos Radares Inteligentes, que começaram a ser instalados no mês de setembro. Calculando a velocidade média entre dois radares. E, se passar da média permitida, você é multado. O que se espera é que as velocidades sejam mais baixas, ao longo de todo o percurso.

SEGURANÇA. À noite, voltando de um restaurante mesmo nas madrugadas, você pode sentar num banco de praça para conversar. Sem riscos de ser assaltado. Trata-se de uma experiência única, sobretudo para quem mora nas grandes cidades brasileiras. A de se sentir em segurança, nas ruas.

VINHOS. Não posso falar, que nunca bebi álcool na vida (fora meio gole de champagne, na passagem do ano, para dar sorte). Mas João Carlos Paes Mendonça, que faz (dizem) os melhores de Portugal, e também meus filhos, garantem ser muito bons. Devem ser mesmo. E, lá, bem mais baratos que os mesmos, se comprados aqui. Sem esquecer que vinhos estrangeiros pagam, lá, impostos de 70% sobre seu preço base. E ficam demasiado caros.

EM RESUMO. Dá prazer viver em cidades como essa. Ou passar tempos, de quando em vez. Para, sobretudo, respirar civilização. Por isso vale dizer que ela é mesmo ótima. Sonho com o dia em que ainda escreverei um artigo assim sobre a cidade onde vivo. Para Vicente Yáñez Pinzón, o “lugar de mais luz da terra”. A de Carlos Pena Filho (Guia prático da cidade do Recife), “Recife, cruel cidade/ Águia sangrenta, leão”. De Manuel Bandeira (Evocação do Recife), “Recife das revoluções libertárias/ Recife sem história nem literatura/ Recife sem mais nada/ Recife de minha infância”, aquela em que se fala “a língua errada do povo/ A língua certa do povo”. A de Ledo Ivo (Recife), “Amar várias mulheres / Amar cidades só uma ‒ Recife…/ E assim mesmo diante do mar”. O mar do Recife, a Cidade Submersa do poeta Edmir Domingues. “Encheu-se-me de água o quarto/ Os livros caíram no teto/ Grandes peixes taciturnos/ Espiam-me o sonho imenso”. A cidade do Capibaribe, o Cão sem plumas de João Cabral, assim cantada por Austro Costa (em Capibaribe, meu rio)

Capibaribe, meu rio,
Que vida levamos nós!
Tu corres: em rodopio…
E há quarenta anos a fio:
sempre juntos ‒ e tão sós!

JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

SORTEIO ???

Respondendo a pergunta sobre como encarava os que lhe criticavam Dario Fo, Nobel de 97, respondeu (Il Fabulazzo) com a lembrança de um velho provérbio chinês que recomenda sentar à margem do rio para compreender que “as águas passam mas o rio e as margens continuam os mesmos”. Comparo nosso antigo Ginásio (hoje Colégio) de Aplicação a esse rio, onde somos nós as águas que passaram.

Penso em rostos e nomes nas águas desse rio, lamentando conviver hoje com tão poucos. Alguns sabemos onde estão, que foram dar em mares distantes – e esses, quem sabe?, ainda poderemos reunir algum dia. Outros o rio levou definitivamente; e só não desapareceram, por completo, apenas porque sobrevivem como exilados em nossas memórias.

No Ginásio de Aplicação daquele tempo, aprendemos que o objetivo da escola não é propriamente ensinar – ou não é apenas ensinar, como queiram. Seria mais. Saber que seu papel fundamental é fazer com que jovens compreendam o mundo que habitam, e estejam permanentemente dispostos a interferir nele. É mais solidariedade que exclusão. E do Ginásio haveria tanto mais a dizer; os professores, o casarão da Nunes Machado, o guaraná Fretelli Vita em frente, o padre Sales na igreja da Soledade à esquerda. E lamentar que, indo para longe (Cidade Universitária), tudo isso tenha se convertido, sem remédio, num passado que passou.

Fui de sua segunda turma. História curiosa. Estudava numa escola experimental, com só 4 alunos, o Instituto Capibaribe, imaginado por Paulo Freie e dona Rachel Correia de Crasto. Tão nova que, fim do ano, sequer fazia provas. No quarto ano primário (eram 5 naquele tempo, hoje não sei), com só 9 anos, dona Rachel chamou minha mãe “Seu filho está perdendo tempo aqui, mande ele para o Ginásio de Aplicação”.

Era o Exame de Admissão mais severo daquele tempo. Razão pela qual feito um mês antes do das outras escolas, para que os não aprovados pudessem ir para elas. Com turmas de 30 alunos. Apesar dos mais de mil inscritos naquele ano, só 18 foram aprovados. E tão a sério levavam a ideia de ser uma escola (experimental) de excelência que sequer completaram as 30 vagas disponíveis com os 12 alunos que vinham em sequência.

Isso lembro por ter lido declaração do diretor do CAP (assim se chama, hoje) segundo quem não haverá mais exames para “a entrada de novos alunos”. Que passa a se dar não com provas, mas por sorteio. Pois, segundo ele, “o sorteio democratiza o acesso ao colégio”.

Fosse pouco terça passada o amigo querido Flávio Brayner apoiou a tese. Segundo ele, tudo se resume ao confronto entre “classes abastadas” e “classes populares”. Num cenário de oposição entre “individualismo liberal da modernidade burguesa” e as “condições sociais em que vivemos”. Em belas palavras, “o sorteio não é o abandono dos deuses: é nossa crença de que somos todos iguais”. Para simplificar, e num discurso ideologizado, trata-se de reação à crença de que só a classe média alta pode pagar cursinhos. O que é muito discutível. Fico à vontade para falar porque, dinheiro sobrando, minha família nunca teve. E não fiz cursinho nenhum. Prova de que não é sempre necessário pagar cursinhos caros para ser admitido.

Segundo Flávio, reclamar do sorteio seria “chororô”. Só um clichê. Sem admitir que apenas consideramos mais justo, mais adequado e melhor, para a instituição, um outro critério. De admissão não por sorte, dados (alea) na mesa, mas pelo mérito. Com provas. Um pensamento, nele, de resto até coerente. Que, faz pouco, pregou o fechamento compulsório das escolas privadas, para que todos os alunos fossem obrigados a frequentar escolas públicas. Pouco importando, nessa tese, que nenhum país de Primeiro Mundo use um sistema assim.

Lembro George Orwell (1984), “Quem controla o futuro controla o presente e quem controla o passado controla o futuro”. E é com esse futuro que me preocupo. Como se trata de uma instituição do Governo Federal, creio que se pense estender essa relação, entre sorteio e Democracia, para além das fronteiras do Colégio. Até por não fazer sentido usar o tal sorteio apenas para substituir um Exame de Admissão. Vão, provavelmente, além. Usar ele em tudo. Porque recusar o mérito na admissão, sob o argumento (paupérrimo) de que o sorteio seria mais democrático, no fundo é só o que fica desse discurso populista. Algo que, perdão, não faz nenhum sentido.

Se assim for, então, corremos o risco de ver os argumentos apresentados, em defesa do Colégio de Aplicação, valendo para todos os outros critérios de admissão operados pelo Governo Federal. Vestibular?, pra quê?, melhor e mais barato fazer logo sorteio. Concursos públicos?, não, sorteio é mais simples. Médicos, que vão tratar de nossos filhos?, sorteio. Pilotos de avião?, sorteio. Ministro do Supremo?, sorteio. Ninguém mais vai poder reclamar de não ter “recursos proporcionados pela condição de classe”. Mesmo não havendo isso em nenhum lugar do planeta. Uma revolução, segundo eles. Enquanto penso que tudo se resume a demagogia e preconceito, para Voltaire (Maomé) “o rei do vulgo”.

Choro o fim do Ginásio de Aplicação que ainda sobrevivia nos pobres corações dos que foram seus alunos. Que o novo Colégio de Aplicação, ao trocar o mérito pelo acaso, vai deixando de ser uma tentativa de ensino com excelência para virar só loteria, uma casa de sorteios.