CÍCERO TAVARES - CRÔNICA E COMENTÁRIOS

Capa do LP Encontro com Adelino Moreira (1967)

Nascido em Gondomar, Portugal, em 28 de março de 1918, Adelino Moreira de Castro, nome artístico Adelino Moreira, veio morar no Brasil, Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro, com apenas um ano de idade. Foi o maior compositor luso-brasileiro interpretado por Nelson Gonçalves. Entre suas obras-primas destacam-se Última Seresta (a primeira a ser gravada), A Volta do Boêmio, A Deusa do Asfalto (reinterpretada magistralmente por Xangai), Boêmia, Negue, Escultura, Flor do Meu Bairro, Fica Comigo Esta Noite, Devolvi (esta gravada por Núbia Lafayette), Ciclone (interpretada por Carlos Nobre), Cinderela, Beijo Roubado, Êxtase, Última Serenata, e tantas outras excelentes composições de amores suburbanos dramáticos gravadas principalmente por Nélson Gonçalves, seu intérprete maior.

Iniciou sua carreira musical a convite do compositor Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, então diretor artístico da Continental, onde gravou, em 1944, os fados Saudades e Olhos d’alma, de Campos e Morais. Em 1945, começou a tocar violão. Nesse mesmo ano, gravou seu segundo disco com as primeiras composições: o samba Mulato Artilheiro e a marcha Nem Cachopa, Nem Comida!. Esta, uma parceria com Carlos Campos. Em 1946, gravou as canções A Minha Oração e Perdoa, de Moreno e Ferreira e as marchas Num Coração, duas Pátrias, de Renato Batista e O Expresso Continua, de sua autoria com Américo Morais. Em 1948, voltou a Portugal, gravando canções brasileiras. Lá, participou como cantor da revista Os Vareiros. Retornando ao Brasil, no início dos anos 1950, abandonou a carreira de cantor, intensificando sua atividade de compositor.

Em 1952, conheceu o cantor Nelson Gonçalves e iniciaram uma intensa parceria. Em geral Adelino compunha e Nelson gravava, mas em algumas músicas como o bolero Fica Comigo Esta Noite, os dois assinaram em dupla. A primeira canção gravada por Nelson foi Última Seresta (1952), seguida de inúmeras outras que passaram a dominar os discos do cantor – normalmente sambas-canções dramáticos – dos quais se destacam o clássico A Volta do Boêmio (que vendeu a astronômica cifra de um milhão de cópias), Meu Dilema, Meu Vício É Você, Doidivana, Flor do Meu Bairro, entre outras.

Durante uma década (1955-1965) Adelino Moreira foi uma máquina de sucessos, provando que era mais forte do que seus intérpretes. Quando se afastou de Nelson Gonçalves, em 1964, num período conturbado da biografia do cantor, Adelino começou a distribuir composições para outros intérpretes. Um dos maiores sucessos de 1959 foi o samba-canção Ciclone que fez para Carlos Nobre, um dos muitos imitadores de Nelson Gonçalves, com quem reataria a amizade dois anos depois. Adelino alegou, na época, que só deu a música para Carlos Nobre para que Nelson Gonçalves entendesse que não era insubstituível.

Foi uma amizade de ótimos resultados financeiros para Adelino Moreira. O sucesso de Argumento, Meu Desejo, Êxtase, Meu Vício é Você e, sobretudo, A Volta do Boêmio, renderam a Adelino Moreira, em 1960, o suficiente para comprar, à vista, um palacete por seis milhões de cruzeiros na Zona Norte carioca, andar de carro importado e deixar de lado os “bicos” (como aprendiz de teatrólogo, sem muito êxito, e radialista).

Sabia como ninguém a fórmula do sucesso e seus limites. Não aderia a modismos. Suas composições eram basicamente do samba-canção (e marchinhas carnavalescas). Em suas letras pintavam cenários suburbanos, habitados por manicures, mariposas (mulheres atraídas pelas luzes das casas noturnas), cinderela e uma fartura de desencontros amorosos.

Em 1962, no programa de TV, sendo entrevistado pelo cultuado e admirado compositor de Aquarela do Brasil, Ary Barroso, este se queixou a Adelino Moreira de não fazer mais sucesso e perguntou se ele poderia lhe explicar o motivo. Mesmo estando de ante de um mito da música popular brasileira, que morreria dali a dois anos, Adelino Moreira não se deixou por rogado, e fulminou naturalmente: “O senhor começou a compor músicas para meia dúzia de criaturas que o endeusam e colocam o senhor no lugar em que o senhor não se encontra. O senhor se esqueceu completamente daquela massa que o elegeu como o maior compositor brasileiro até dez anos atrás. Se o senhor volta a compor para essa massa popular, voltará a fazer o mesmo sucesso.”

O compositor Fernando César, de grandes sucessos no início dos anos 1960, especialistas em versões (fez, por exemplo, a de Marcianita para Sérgio Murilo), definiu com precisão a música de Adelino Moreira: “O Adelino escreve pra gente que toma traçado (coquetel de cachaça com vermute), frequenta botequins, vai ao enterro de todos os amigos, dá cabeçadas nas vitrinas, usa sapato preto com meia branca, diz ‘com o perdão da palavra’ quando fala em suínos, e ‘Deus te ajude’ quando alguém espirra, ou seja, escreve para a grande maioria.”

Adelino Moreira morreu em 2002, com 84 anos, de um infarto, um óbito que ganhou grande cobertura da imprensa. Àquela altura, sua obra tinha sido reavaliada e ele desfrutava o status de mestre da MPB. Artistas de nichos diferentes o regravaram. Maria Bethânia deu uma interpretação definitiva a Negue, trazendo-a de volta às paradas e ao estrelato merecido em 1983 (no álbum Álibi). Em 2001, Negue foi incluída no CD São Vicente di Longe, de Cesária Évora. A banda mineira Pato Fu gravou A Volta do Boêmio, em 1995, no CD Gol de Quem? Sem contar as interpretações feitas pelo grupo Camisa de Vênus, em 1991, Ney Matogrosso e o genial violonista Rafael Rabelo. Em 1980, Ângela Ro Ro fez uma releitura de ‘Fica Comigo Esta Noite’ – música que foi faixa-título do CD da cantora Simone em 2000 – e, em 1998 as irmãs Alzira e Tete Espíndola reviveram ‘Garota Solitária’.

Adelino Moreira não era bem visto pela crítica high society da burguesia metida a bunda da bossa nova, tanto é que o produtor Valter Silva, conhecido como Pica Pau, recusava-se a apresentar as músicas dele no programa que tinha na Rádio Bandeirantes. Mas o grande compositor de ‘Deusa no Asfalto’ e ‘A Volta do Boêmio’ não perdeu a pouse e a classe e o fulminou nos versos do samba-canção ‘Seresta Moderna’ cantada por Nelson Gonçalves: ‘Um gaiato cantando sem voz/um samba sem graça/desafinado que só vendo/e as meninas de copo na mão/fingindo entender/mas na verdade, nada entendendo’.

“Quem vive de ilusão é urubu de curtume” – Jessier Quirino.

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