A PALAVRA DO EDITOR

Eu possuía todos os predicados para ser uma criança complexada: bissexto, magrela, tímido, gago, canhoto, míope e sem qualquer habilidade esportiva. Como se não bastasse a miopia, ainda por cima usando armação de casco de tartaruga que me assemelhava ao Dr. Silvana, o vilão mais antigo de Shazan na época em que o herói ainda era chamado de Capitão Marvel.

O incompreensível de tudo isso é que nunca sofri qualquer tipo de bullying nem me puseram apelidos, talvez por estudar num colégio de viés católico. Convivia com a minha patota sem qualquer aptidão que me destacasse dentre os demais colegas. Nada disso impedia-me de ler muito, ouvir música de qualidade e sonhar. Sonhava alto. Nada de sonhos diminutos.

Um deles era imaginar-me substituindo Paul McCartney no conjunto The Beatles. Para mim, nada mais natural: eu era canhoto tal qual o dito cujo e dispunha de alguma afinação vocal. Porém, o sonho diluía-se ao lembrar dos meus cabelos crespos e da impossibilidade de corta-los ao estilo mot-top, que consistia em moldar as costeletas longas e a franja na testa no feitio tijelinha.

A timidez nunca impediu de eu enveredar por inovações no ginásio. Lembro bem da série ficcional futurística criada por mim e publicada, semanalmente, no painel de informes da escola. A trama ficou tão complicada que eu não soube como dar-lhe um final, então parei de escrever. A minha professora cobrou-me o desfecho, porque as mães dos alunos estavam ansiosas pelo epílogo da história.

Tomávamos aulas de canto orfeônico e o nosso professor classificou-me como um segunda voz. Na época, faziam sucesso no Brasil os trios Irakitan e o Los Panchos. Arvorei-me a criar um trio, e o fiz. Deu certo. Agora vem a pergunta: um gago pode cantar? Claro! Canta melhor do que fala. Vejam o exemplo de Nelson Gonçalves, gago de fazer pena, porém um cantor incomparável.

Na prova final das aulas de cântico o professor da matéria não compareceu. Coube ao diretor do ginásio, um sacerdote, assumir o comando do teste vocal, simplificado de forma que cada aluno cantasse a música de sua preferência.

Ao chegar a minha vez, o diretor, conhecedor e apoiador do nosso trio, perguntou-me: Narcelio, você conhece a música Interesseira? Eu lhe respondi já cantando o sucesso das paradas na voz de Anísio Silva:

Interesseira, não amas ninguém/Não tens coração/Só causas o mal/De quem te quer bem/Interesseira, a mim não convém/Pagar por um desejo, que é farsa do teu beijo/Que alma não tem.

Nessa linha de lamentações a letra exalta a desilusão de um amor não correspondido. As más línguas interpretaram o pedido da canção como um desabafo por decepção sentimental do clérigo na busca pela atenção de uma aluna do ginásio.

Semanas atrás, após uma baita crise de garganta, entrei numa loja e interpelei uma vendedora com voz grave e bem postada, sobre determinado equipamento de som. Antes de me responder a jovem perguntou: O senhor é locutor? Respondi-lhe: Sim. E já destruí muitos casamentos com essa minha voz radiofônica. Mostrando espanto, ela se afastou de mim exclamando: Cruz, credo!

Por essa razão e outras assemelhadas, eu resolvi educar a voz. Espero apenas o cancioneiro Fernando Vila concluir as suas aulas de canto para juntos criarmos um dueto direcionado para dor de cotovelo. Eu, na condição do segunda voz. Claro!

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