Não é possível, em algum momento da vida, deixar de se ser o que se é.
Um árbitro de futebol, por exemplo, que intimamente torce por determinado time, sendo uma pessoa ética e honesta tudo fará para evitar que suas preferências atuem de modo a favorecer a equipe do seu coração.
Porém, todavia, contudo, por mais que se esforce, suas preferências não deixarão de atuar, negativa ou positivamente.
Seus olhos, no caso positivo, poderão perceber uma falta onde ela não existiu, a favor do seu time.
Por outro lado, pode ocorrer a interferência negativa, ou seja, de tanto esforço para não se deixar influenciar a favor do time pelo qual torce, poderá inconscientemente, para não ser injusto, atuar contra ele, deixando de perceber uma falta a favor do seu time quando ela efetivamente aconteceu.
A questão que se coloca é a da necessidade de ter conhecimento de que tudo o que uma pessoa pensa a respeito do mundo, sua escala de valores, seu sistema de crenças, que fazem parte de sua personalidade, que orientam sua forma de agir, de comportar-se e de analisar os fatos e circunstâncias, interferem em qualquer atividade que desempenhe ou vivência que experimente, na família, na escola, no trabalho, no casamento, nas amizades.
Sabendo disso, é possível procurar obter um distanciamento, tão afastado quanto possível, quando se trata de analisar e decidir, de agir ou aguardar.
Hoje, debates em torno dessa particularidade, de como nossos conceitos prévios interferem em nossas ações, se tornam mais vivos quando gravações de conversas mantidas entre juiz e ministério público revelam o grau de interferência que esses pré-conceitos imprimiram no andamento de processos judiciais de que participavam, como julgador e parte.
Tal revelação procura ser contestada por alguns que propõem que a despeito dos diálogos comprometedores, as provas nos processos existem e não podem ser ignoradas pelo fato de juz e procuradores terem demonstrado algum grau de parcialidade.
Equivale a dizer: sim, eles demonstraram parcialidade, mas essa parcialidade não serviu para dar maior caráter condenatório às provas do que elas por si tinham.
Esse argumento possui algumas fragilidades, sendo a primeira delas a da imposição legal a respeito da parcialidade e imparcialidade do juízo, que serve também para a questão do aconselhamento e combinações entre juiz e partes: A ação conduzida por juiz cuja parcialidade for demonstrada é nula. Ponto final.
A segunda fragilidade, não menos importante, consiste no fato, psicológico, apontado: conceitos prévios do juiz que interfiram no seu julgamento o tornam suspeito para atuar.
Está certo que essa suspeição não pode ser tomada como absoluta, pois se o fosse juízes teriam de ser afastados com enorme frequência, pois estariam sempre afetados por suas convicções políticas, filosóficas, religiosas, esportivas, morais e tudo o mais, enfim.
Sim, porém.
É que se existirem esses conflitos apenas internamente, entre o juiz, suas preferências e a causa que deva julgar, em geral sua capacidade de minimizar suas posições pessoais agirá a ponto de garantir a isenção o mais ampla possível.
Contudo, uma vez que esse conflito for revelado socialmente, publicamente, não é mais possível ignorá-lo: a ação judicial está prejudicada (o termo “prejudicada” tomado aqui em sua acepção comum).
Meus leitores sabem a que estou me referindo. Ainda que esteja falando em tese, sabem que trato do caso do julgamento das ações de Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba.
E creio que mais não foi dito nem seria preciso falar se não fosse a recente decisão da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo (16set2019) a respeito de mais um escalafobético processo promovido pela Lava Jato contra Lula (e seu irmão, Frei Chico), de que todos têm conhecimento.
A decisão diz que a denúncia é inepta e que não é preciso ter aguçado senso de justiça, bastando um pouco de bom senso, para perceber que a acusação está lastreada em interpretações e um amontoado de suposições.
Agora, sim: ponto final.