CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

JACOB FORTES – BRASÍLIA-DF

APOLOGIA AO LIVRO

No transcorrer da quadra menineira meu pai levou-me para conhecer a cidade, a bem dizer uma rala povoação onde rotineiramente aprovisionava-se daqueles mantimentos não produzidos no seu limitado chão sertanejo: uma gleba encravada no recurvo da Serra do Encantado (onde uma caneta pesava mais que uma enxada). Saímos de casa no justo momento em que a sinfonia melódica da passarada saudava o crepúsculo. Chegamos à povoação quando o sol, erguido, já andava pelo mundo. Enquanto meu pai comprava o essencial nas quitandas de salvação eu (encolhido a recato e com o sentimento de alguém que ocupa um lugar que não lhe pertence) o aguardava debaixo de uma figueira folhuda ao lado dos amigos Zeca e Zico, os jumentinhos de doma.

Observava tudo com aquela ingenuidade própria dos meninos jecas que habitam a hinterlância. Próximo a essa árvore existia um amplíssimo quiosque no qual funcionava um biclicletário. O propósito do bicicletário consistia em alugar as prestimosas bicicletas; era o meio de vida do proprietário, Senhor Xudu. Naqueles tempos de antanho, em que esse transporte fora lançado, possuir uma bicicleta era exclusividade dos eminentes apatacados; os pardos de pobreza, não. A única forma dos desprovidos de vintém experimentarem a novidade seria por meio da alugação de uma delas.

Tão logo se abriram as portas do bicicletário começaram a chegar os alugatários. Em pouco tempo a frota bicíclica havia arribado. Lembrei-me das abelhas do meu sertão, em revoada matinal à caça do néctar das flores silvestres. Os fregueses, depois que grudavam as mãos no chifre do bicíclico, saíam com ar de felicidade. Não era para menos. Pedalar oferecendo a face para os beijos da brisa é sempre prazeroso, mesmo quando um longo percurso impõe farta sudação. Vim conhecer essa sensação agradável próximo à idade adulta quando consegui amealhar o necessário para alugar uma bicicleta.

Daí a pouco, chega mais um freguês:

— Senhor Tadeu Xudu, eu quero alugar uma bicicleta.

— As bicicletas foram todas alugadas. — Aguarde, se puder; em breve uma delas estará de volta.

Pois bem, os livros deveriam ser tão andejos e ter a mesma mobilidade das bicicletas de aluguel, ou das abelhas: continuamente indo às mãos humanas e retornando. Em vez disso, os livros, derrotados pela inutilidade, dormitam nos vãos das estantes, por vezes amontoados, ostentando as marcas visíveis do desuso, inclusive grossas camadas de poeira. Pior que essa constatação, quando visitei alguns acervos, foi ouvir os responsáveis se gabarem das suas bibliotecas estarem entupidas de livros, a bem dizer, todos aquartelados. (A verdadeira biblioteca são as mãos humanas!) A circunstância reforça as estatísticas: o grande Brasil lê pequeno quando comparado a países da Europa e Argentina.

Bibliotecas públicas não deveriam expressar a caixa mortuária dos livros, mas apenas os seus aeroportos de decolagem e aterrissagem, marcados por um movimento de vai e vem, aos moldes das bicicletas ou das abelhas. Se os livros dormitam, maquilados de pó nos seus ataúdes, é porque o povo não lê quanto devia. O povo pode até se encontrar de bucho saciado, mas a mente, insaciável, merece e precisa de continuada leitura. A leitura — maneira barata, e até chique, de entretenimento — ensina a escrever, afugenta a ignorância, prepara, qualifica, fornece experiência, amansa a incivilidade e a grosseria, aperfeiçoa a dimensão interpessoal, possibilita conhecer o mundo, a arte, a tecnologia, amplia a capacidade de percepção, permite avaliar o melhor caminho que a vida oferece, facilita a compreensão dos direitos de si e dos outros. Também a insensatez e a impertinência humana por vezes se amolgam ante os efeitos benéficos do desapaixonado e fiel companheiro livro. Esse fiel amigo, que tem o condão de maravilhar as pessoas e ameigar corações, é “mudo que fala; surdo que responde, cego que guia; morto que vive”. Divorciadas da leitura, as pessoas tornam-se vulneráveis aos caminhos insidiosos.

É pesaroso constatar que os livros, mesmo os de boa semente, vão sendo rejeitados a cada dia, vencidos por inutilidades que bem se prestam a fomentar a alienação das pessoas. Tem-se a impressão de que a glória dos livros parece esvair-se em ânsias de morte. Houve época em que os livros eram companheiros de vigília; não se separavam dos leitores nem mesmo no interior de coletivos ou em logradouros. A pouco e pouco passaram a dormitar nos vãos das estantes, mas já são encontrados pelos catadores de lixo que os olham com o pensamento voltado para a balança. Essa inapetência à leitura, que beira a fronteira do enjoo, por sobradas razões sugere conjecturar que as gerações pósteras poderão incorrer em contravenção se forem flagradas em ato de leitura ostensiva, (no papel), ainda mais se em via pública for.

Porém, o desábito à leitura não é culpa dos diretores das bibliotecas, nem das pessoas, mas do modelo. Se o poder público estabelecer políticas de motivação à leitura a realidade será diferente. Se houver interesse, se as escamas dos olhos forem retiradas, se o tema for posto em discussão as ideias brotarão. Exemplificativamente: que tal se ao alunado brasileiro, em todos os níveis, for concedido pontos, como parte da avaliação, pela leitura de livros? Evidentemente a leitura seria aferida por meio de uma banca sabatineira. Que tal, ainda, se os pais vinculassem as mesadas dos filhos à leitura de livros? Que tal, também, se os pais infundissem nos filhos o hábito à leitura, principalmente entre os mais vulneráveis ao cabresto da internet e programas de televisão, alguns destes repletos de vacuidade? Essas leituras, é claro, seriam também sabatinadas. Que tal, igualmente, se um livro retirado de uma biblioteca no estado de São Paulo pudesse ser devolvido por intermédio de uma biblioteca da cidade de João Pessoa, Recife, Goiânia e vice-versa?

A ideia é fazer o livro se deslocar em múltiplas direções procedimento similar ao das abelhas que, ao alçarem voo em busca do néctar, prestam valioso serviço à natureza e ao homem. Durante o seu trajeto, as abelhas vão espalhando, naturalmente, por sobre os ovários das flores, os grãos de pólen que carregam nas suas corbículas, realizando, desse modo, a polinização responsável pela fecundação de frutos e, consequentemente, das árvores.

A despeito dos fascínios que as tecnologias exercem, a leitura no papel não pode morrer; precisa revigorar-se. Também, é preciso atitude de desmistificação: a leitura não pode ser entendida como artigo de primeira classe, mas dos brasileiros: de palácio ou de favela. Por que constitui espanto flagrar-se um boia-fria, ou uma trabalhadora doméstica fazendo palavras cruzadas ou lendo um Machado de Assis? O Brasil precisa socializar a leitura; não pode continuar lendo nanico, mas do tamanho do seu tamanho.

Com um esforço bem direcionado do poder público, da estrutura educacional e da sociedade, é possível socializar a leitura e imprimir aos livros um papel parecente ao das bicicletas do Senhor Xudu ou das abelhas. É preciso popularizar aquele que informa e transforma. É sempre tempo de louvarmos o companheiro livro, aquele que “aberto, é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora”.

Dedico a reedição deste texto a um idealista solitário que cascavilhei numa cidade de população franzina do litoral norte do Estado do Ceará. Trata-se de um ex-seminarista que, desajudado do poder publico, fundou uma biblioteca comunitária. Como a um missionário penitente percorre diariamente, com a sacola cheia de livros, as zonas urbanas e rurais do município, de casa em casa, promovendo o hábito à leitura e orientando jovens e apedeutos numa missão peregrina movida por febril ideal. Da autoria desse abnegado é o Decálogo do Bibliófilo, uma espécie de estatuto do leitor que, durante seu trabalho andejo decalca-o à mente dos catecúmenos da leitura. Desse decálogo reproduzo os dois primeiros artigos: “O livro é o seu melhor amigo; se o amigo é um tesouro, conservá-lo é o melhor investimento material e espiritual”. “Se você não ler, de onde vem seu saber? ”

“Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.”.

Castro Alves

“Livros manuseados não pegam mofo, nem traças e cupins. Os livros curam o estresse, a depressão e os transtornos psiquiátricos”.

CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

JÚLIO RIBEIRO – DIVINÓPOLIS-MG

Fabuloso, famoso, célebre, conhecido, fantástico, histórico, … Editor Berto,

Sou mais um leitor viciado dessa gazeta .

Gostaria de compartilhar esse vídeo nessa importante gazeta!

Mas temo que a linguagem não seja apropriada para destintos leitores fubânicos.

Se não puder publicar vou entender.

Desejo uma ótima semana para todos.

R. Eita peste!!!

Fiquei ancho que só a porra com tanta qualificação.

Vou até repetir:

Fabuloso, famoso, célebre, conhecido, fantástico, histórico,

Brigadíssimo, meu caro viciado fubânico.

Mando um grande abraço pra essa linda e acolhedora Divinópolis.

Quanto ao vídeo que você mandou, sou obrigado a dizer que, realmente, a linguagem nele contida não é apropriada aqui para esta gazeta escrota.

Como é do conhecimento de todos, assim dito por altos e baixos, brancos e pretos, ricos e fudidos, nobres e plebeus, os do povo e os da governança, o JBF é uma recanto puro, limpo, sem palavrões, sem putarias, sem sacanagens e sem qualquer resquício de pornografia.

Um ambiente familiar e onde impera o respeito e a pureza.

Mas, mesmo assim, vou abrir uma exceção – morrendo de vergonha – e vou botar no ar o vídeo que vocês nos mandou, no qual existem expressões como “um comendo o cu do outro“.

Vôte!!!

Que coisa feia!!!

Fico até com vergonha de digitar tamanha putaria.

Brigadão pela participação e pela audiência, meu caro.

Vocês leitores são a força que mantém no ar esta página putárica de baixíssima qualificação.

MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

ESQUERDA OU DIREITA?

Imagine que você mostre a alguém o desenho de um triângulo, com as medidas anotadas, e pergunte se é um triângulo retângulo ou equilátero. Agora imagine a pessoa murmurando “éééé, veja bem, considerando os aspectos dialéticos dos ângulos e as relações entre os lados…” Absurdo, não é? Qualquer um com o mínimo conhecimento de matemática sabe a definição de um triângulo retângulo e de um triângulo equilátero.

Agora, a quantidade de tempo, de palavras e de bytes gastos nos últimos tempos para discutir se nazismo é de direita ou de esquerda é simplesmente absurda, e pior, sem chegar a nenhuma conclusão.

Minha opinião? Se temos um fato histórico conhecido, ocorrido não há milênios mas poucas décadas atrás, com farta documentação e bibliografia, e se ninguém consegue encaixar estes fatos na definição de esquerda ou na definição de direita, é porque estas definições não existem, ou existem e não prestam para nada.

Explicando: direita e esquerda hoje são auto-elogios (de um lado) e xingamentos (do outro). Quem diz ser “de esquerda” na verdade quer dizer que é bacana, legal, inteligente, gente boa, a favor da paz e da justiça e do amor e das criancinhas. Quem diz ser “de direita” quer dizer a mesma coisa. Naturalmente, quem é “de esquerda” acha óbvio que tudo que é ruim no mundo é de direita, incluíndo os pernilongos, os terremotos e o vírus da gripe; quem é “de direita” acha exatamente o mesmo da esquerda.

Como filho feio não tem pai, é óbvio que todos empurram o nazismo (e o fascismo) para “o outro lado”, mesmo sem o mínimo conhecimento sobre o assunto.

Mas falando no que interessa, o que pensa a “direita” e a “esquerda” hoje? Quais suas propostas? Infelizmente, poucas, e muitas vezes similares. É como diferenciar um corintiano de um palmeirense: eles usam camisas diferentes, tem idolos diferentes e odeiam uns aos outros, sem que isso implique que pensem de maneira diferente sobre qualquer outro assunto. “esquerdistas” e “direitistas”, em sua maioria, são fãs fanáticos de certas personalidades, repetem cegamente clichês (igual a um torcedor fanático explicando que seu time é o campeão do Torneio Balas Juquinha de 1931 e isso é equivalente a ser campeão mundial), odeiam e xingam qualquer um que não concorde com ele, e sua única proposta política é “mais estado e mais controle do estado sobre tudo”.

Naturalmente, uns e outros dão como pressuposto que o controle do estado se dará com base nas suas idéias, que são as certas, e jamais sob as regras “dos outros”, que são totalmente erradas.

Existe uma terceira posição, e esta sequer tem nome certo. Afinal, o termo “liberal” é considerado direita na Inglaterra, esquerda nos EUA, e odiado por direita e esquerda no Brasil. Mas, independente do nome, é o lado que quer menos governo, e menos controle do estado sobre o indivíduo.

E para não deixar um assunto pendente, vou ajudar você que lê a tirar suas próprias conclusões: Um partido com estas idéias é de esquerda ou de direita?

“Nós exigimos a nacionalização de todos os grupos investidores.”

“Nós exigimos participação nos lucros em grandes indústrias.”

“Nós exigimos […] a imediata socialização de grandes depósitos que serão vendidos a baixo custo para pequenos varejistas […]”

“Nós exigimos uma reforma agrária de acordo com nossas necessidades nacionais, e a oficialização de uma lei para expropriar os proprietários sem compensação de quaisquer terras necessárias para propósito comum; a abolição de arrendamentos de terra, e a proibição de toda especulação na terra.”

“A fim de executar este programa, nós exigimos: a criação de uma autoridade central forte no Estado.”

* * *

Histórias reais

O rei Carlos III descansava com sua família após o jantar quando seu filho, então um adolescente, lhe disse:

“Papai, nós os reis somos mais afortunados que os demais homens.”

“Por quê, meu filho?”

“Porque nossas mulheres jamais encontrarão homens que sejam superiores a nós, e por isso não ficarão tentadas a nos trair.”

Carlos III balançou levemente a cabeça e murmurou:

“Como você é tolo, meu filho. Rainhas também podem ser putas!”

JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

CALHA DE SABIÁ E OS POTES D’ÁGUA

Chuva da tarde caindo na casa da Vovó

Para quem nasceu e cresceu na roça, esquecer aqueles dias difíceis, não é coisa tão fácil. A infância, quase que por inteiro, e boa parte da adolescência num ambiente que marca forte a vida de muitos. E, como quase tudo foi tão bom, tão edificante, tão valorizado, porque influiu diretamente na formação do homem, é como massagear o ego, falar sempre. Reviver o bom.

E por que não falar da minha infância?

A madorna vespertina só era atrapalhada e interrompida quando, repentinamente, começava a chover. Às vezes, dizíamos até que, “chuva com sol, era casamento de raposa.”

A rotina diária era interrompida. A gente corria para tentar “aparar a água da chuva” que serviria para alguma coisa. Para lavar roupas, panelas e pratos e para molhar o canteiro cultivado com cheiro-verde, tomate e pimenta malagueta.

– Fii, essa água num seuve prumode beber. Num apare não!

Meu Avô João Buretama usava uma machadinha e ele próprio fazia as calhas colocadas ao redor da casa. Usava paus de sabiá, uma madeira que, estranhamente, tinha o “miolo” escuro, aparentemente apodrecido, mas era tão duro quanto ferro. Era ele que fazia essas calhas, e, às vezes, fazia até algumas sob encomenda.

Na ausência das chuvas, principalmente nas calhas que ficavam à sombra do sol do meio dia e nas primeiras horas da tarde, os dois gatos da casa dormiam ali, e, às vezes, aproveitavam também para fazer suas necessidades. Outros quase que hospedeiros, eram as “taruíras” (também chamadas de “troíras” ou “osga”), cuja urina se tinha como venenosa.

Gato saboreando a sombra para uma soneca

Era por essas impurezas contidas nas calhas, que a “sábia” Avó nos orientava para não aparar as primeiras águas das chuvas para beber. Urina de gato, fezes e urina de ratos, e até a urina das osgas poderiam prejudicar a saúde de alguém, num lugar onde só se conhecia a medicina dos chás e ervas.

– Mais tarde meu fii apara para encher os potes e as cabaças, viu!

E lá estavam, ao final da boa chuva, os mosquitos voando e sendo comidos pelos pássaros, principalmente as andorinhas e os bem-te-vis em mergulhos e piruetas que mais pareciam aqueles aviões “caças” nas guerras.

Três potes grandes, com panos amarrados nas bocas para coar a água (seria por isso, a justificativa do termo secular de “água potável”?) e algumas quartinhas que eram postas no parapeito das janelas para “gelar”. O pote da casa ficava sob vigilância do sapo “Merquíades”, num dos cantos da sala da casa, para evitar que osgas, baratas e moscas sujassem a água.

CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

CARLOS ROCHA – GOIÂNIA-GO

Berto, meu caro.

Saudações goianas

Parece que o Instituto Lula, aquele idealizado e criado para pesquisas não sei do que, vai leiloar fotos do molusco pra arrecadar dinheiro para suas despesas advocatícias etc, etc, etc…

Já falei pros amigos que aqui em casa vamos economizar o máximo pra adquirir algumas desses preciosidades.

Oops!

R. Meu caro, eu tenho uma ideia melhor.

Ao invés de comprar fotos do Instituto Lula, compre aqui mesmo no JBF.

Tem uma foto excelente que foi tirada por Chupicleide, nossa secretária de redação.

Veja que lindo:

foto: eu to preso

JOSÉ DOMINGOS BRITO - MEMORIAL

AS BRASILEIRAS: Nise da Silveira

Nise Magalhães da Silveira nasceu em Maceió, AL, em 15/2/1905. Médica psiquiatra e revolucionária dos métodos de tratamento de doenças mentais. Filha do professor de matemática Faustino Magalhães da Silveira e da pianista Maria Lídia da Silveira. Realizou os primeiros estudos no tradicional Colégio Santíssimo Sacramento e ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 21 anos, a única mulher entre os 157 homens de sua turma. Foi uma das primeiras mulheres médicas do Brasil.

Na faculdade, já no 1º ano, conheceu um rapaz, com quem se casou e fizeram um acordo de não ter filhos, para poderem se dedicar exclusivamente a medicina. Ele, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, paralela a carreira de médico, publicava artigos, ressaltando as relações entre pobreza, desigualdade, promoção da saúde e prevenção da doença no Brasil. Após a formatura, o casal mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de trabalho. Em 1933, no fim da especialização em psiquiatria, estagiou na clínica do Prof. Antonio Austregésilo, pioneiro no estudo da neurologia no Brasil. Em seguida foi aprovada num concurso público e foi trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia do Hospital da Praia Vermelha. Durante essa época, manteve contatos com a elite intelectual carioca e ingressou no PCB-Partido Comunista Brasileiro, onde encontrou a amiga Rachel de Queiroz, junto com quem assinou o “Manifesto dos trabalhadores intelectuais ao povo brasileiro”.

A militância no Partidão durou pouco e acabou sendo expulsa, sob a acusação de ser “trotskista”. Durante a “Intentona Comunista” (1935), foi delatada por uma enfermeira pela posse de livros marxistas e ficou presa por 18 meses no presídio Frei Caneca. Ali dividiu cela com Olga Benário e se encontrava preso o escritor Graciliano Ramos, que deixou relatado o encontro no seu livro Memórias do cárcere: “Noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-a culta e boa, Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. O marido, também médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, em vivo constrangimento”.

Ao sair da prisão, ficou na semiclandestinidade e afastada do serviço por razões políticas até 1944. Aproveitou esse período para conhecer o filósofo Spinoza, que lhe rendeu mais tarde a publicação do livro “Cartas a Spinoza” (1995). Retomou seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Dom Pedro II sempre discordando das técnicas agressivas aplicadas aos pacientes. Tais discordâncias levaram a sua transferência para o trabalho de “terapia ocupacional”, menosprezado pelos médicos. Desse modo, ela fundou uma seção dedicada a esta atividade. No lugar das tarefas de limpeza e manutenção que os pacientes exerciam sob o título de terapia ocupacional, ela criou ateliês de pintura e modelagem com a intenção de possibilitar aos doentes reatar seus vínculos com a realidade através da expressão simbólica e da criatividade, revolucionando a psiquiatria então praticada no país.

Esta experiência possibilitou um vôo maior: em 1952, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e pesquisa destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios de modelagem e pintura que criou na instituição, valorizando-os como documentos que abriam novas possibilidades para uma compreensão mais profunda do universo interior do esquizofrênico. Entre outros artistas-pacientes, encontramos Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emydio de Barros e Octávio Inácio entre outros. Entre 1983 e 1985 o cineasta Leon Hirszman realizou o filme “Imagens do Inconsciente”, mostrando obras realizadas pelos internos a partir de um roteiro criado por ela. O sucesso dessa iniciativa levou-a a criação de outro projeto revolucionário: fundou a “Casa das Palmeiras”, uma clínica voltada à reabilitação de antigos internos de instituições psiquiátricas. Este projeto constituiu-se no alicerce do movimento contra os hospícios, que chegaria ao seu ápice com a Lei Antimanicomial, de 2001.

Foi pioneira também no emprego de animais em auxílio aos pacientes, prática hoje empregada em todos os tipos de doenças. Percebeu essa possibilidade de tratamento ao observar a melhoria de um paciente a quem delegara os cuidados de uma cadela abandonada no hospital, tendo a responsabilidade de tratar deste animal como um ponto de referência afetiva estável em sua vida. Chamava os animais de “co-terapeutas”. Seu interesse pela simbologia expressa nas “mandalas” desenhadas pelos pacientes, levou-a a entrar em contato com o psiquiatra Carl Gustav Jung, em 1954, iniciando uma proveitosa troca de correspondência. Assim, foi introduzida a psicologia junguiana no Brasil. Do mesmo modo, foi introduzida a psiquiatria de Nise da Silveira na Europa, estimulada por Jung. Em 1957 ela apresentou uma mostra das obras de seus pacientes – “A Arte e a Esquizofrenia” – no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. Em seguida, passou a estudar no “Instituto Carl Gustav Jung” em dois períodos: 1957-58 e 1961-62, sob a supervisão de Marie-Louise von Franz, assistente de Jung.

De volta ao Brasil, montou em sua casa o “Grupo de Estudos Carl Gustav Jung”. Em 1974 se aposentou e fundou a Sociedade de Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente, para garantir a permanência da instituição, ainda não integrada na estrutura do Ministério da Saúde. Carlos Drummond de Andrade deu uma força nesse sentido e publicou a crônica – A Doutoura Nise – no Jornal do Brasil, em 2/1/1975: “Não é comum ver-se um funcionário que se aposenta suscitar iniciativa desta ordem para preservar-lhe as realizações no serviço público. Deve ser mesmo caso único. Para se justificarem como entidade, os amigos do Museu, que são os amigos de Nise, precisam ficar atentos e ativos, não deixando que tal instituição seja roída pela indiferença burocrática”. Ferreira Gullar foi outro admirador e, na condição de crítico de arte, ficou emocionado quando conheceu o “Museu”. Adorava seu caráter rebelde e publicou seu perfil – Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde -, em 1996. Foi amiga também de Mario Pedrosa, outro crítico de arte e dizia: “Tive excelentes aliados na literatura e na imprensa. No entanto, poucos médicos foram meus aliados”. Ledora voraz de Machado de Assis, gostava de lembrar sua frase no conto O Alienista: “De médico e louco todo mundo tem um pouco”, para emendar outra de sua lavra: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.”

Seu trabalho inspirou a criação de instituições similares em outros estados e no exterior: Museu Bispo do Rosário (RJ), Centro de Estudos Nise da Silveira (Juiz de Fora, MG), Espaço Nise da Silveira, do Núcleo de Atenção Psicossocial (Recife, PE), Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira, do Hospital Psiquiátrico São Pedro (Porto Alegre, RS), Associação de Convivência Estudo e Pesquisa Nise da Silveira (Salvador, BA), Centro de Estudos Imagens do Inconsciente, da Universidade do Porto (Portugal), Association Nise da Silveira – Images de l’Inconscient (Paris), Museattivo Claudio Costa (Genova, Itália). Societé Internationale de Psychopathologie de l’Expression (Paris). O psicólogo Gonzaga Leal conta que ela gostaria de passar seus últimos dias num mosteiro. “Ela dizia sempre que queria morrer como um gato, que se recolhe e morre sozinho.”. De fato, seu último livro foi “Gatos: a emoção de lidar”, publicado em 1998. Pouco depois veio a falecer em 30/10/1999. Foi homenageada em vida por diversas entidades: “Oficial da Ordem do Rio Branco”, pelo Ministério das Relações Exteriores (1987); “Prêmio Personalidade do Ano de 1992″, da Associação Brasileira de Críticos de Arte; “Ordem Nacional do Mérito Educativo”, pelo Ministério da Educação e do Desporto (1993) entre outras. Em 2014, Luiz Carlos Mello, curador do Museu do Museu de Imagens do Inconsciente, publicou uma alentada biografia Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde.

PENINHA - DICA MUSICAL

THE ANALOGUES

Em 2017 o grupo The Analogues prestou esta homenagem aos Beatles e aos 50 anos do LP Sgt. Pepper’s.